17/09/2010

O guarda-costas

Este é, para mim, um título improvável. É verdade que sempre me intrigou o facto de existirem homens, ou mulheres – veja-se o instrutivo exemplo do líder líbio - cuja profissão é expor a sua própria vida para assegurar que outros vivam e durmam descansados. Por isso mesmo e quase sempre, porque essa é a condição, fatalmente destinada a se anular perante aqueles a quem protegem.

Interrogo-me, muitas vezes, se haverá outra motivação por detrás destes seres, desse estranho ofício, além da prosáica preocupação de garantirem a sua própria subsistência.

Confesso que quando vi o filme "The Bodyguard" (1992), de Mick Jackson, que estrelava até aí, não infortunada cantora Whitney Houston e um circunspeto Kevin Costner, senti que uma certa aura de mistério e de providencialismo poderia envolver esses indivíduos, cuja finalidade na vida parece ser unicamente garantir a vida e a segurança alheias. Mais do que uma simples profissão, o que eles fazem mais se assemelha a um sacerdócio.

Bom, mas a que propósito me meti a divagar sobre uma matéria em relação a qual, tenho que admitir, pouco ou quase nada sei senão o que vou ocasionalmente vendo e lendo.

Simplesmente, porque tive a felicidade de, cerca de quarenta anos depois, ter revisitado, há bem poucos dias, a Ilha de Moçambique. Neste caso, graças ao patrocínio da Universidade de Lúrio. Na verdade, a última vez que lá estive, fora no já remoto ano de 1971. Por alguma razão indescortinável, fui sempre protelando o regresso. E foi ao visitar o Museu da Ilha, acompanhando atentamente as competentes explicações do guia, de nome Litos, que tomei conhecimento de uma história que tinha como protagonistas o primeiro presidente de Moçambique, Samora Machel, e o seu guarda-costas. Como acontece com quase todos os guarda-costas, o nome deste permaneceu na obscuridade. Mas o episódio que o envolve faz esquecer o anonimato que o cerca. Quando visitávamos os aposentos reservados aos governadores coloniais, depois de termos passado por vários compartimentos sumptuosos, ricamente mobilados e extraordinariamente conservados, detive-me a observar, de forma inquisitiva, uma cadeira larga, entrançada que, apesar de ter sido consertada, denunciava o golpe que sofrera. Contou-me, pois o jovem guia que durante a sua épica viagem do Rovuma ao Maputo, em 1975, Samora ali pernoitara, tendo se deitado no leito anteriormente reservado ao monarca português. Aconteceu que, no dia seguinte, o seu guarda-costas, imagino-o completamente cabisbaixo e apreensivo, apresentou-se para lhe comunicar que tinha partido a poltrona que se encontrava num dos corredores do majestoso edifício. De imediato, Samora, bem ao jeito que o tornaria célebre, mandou encerrar aquele que era conhecido como O Palácio dos Governadores ou Palácio dos Capitães-Generais, antigo convento jesuíta, e determinou que passasse a ser um museu, hoje Museu da Ilha de Moçambique! Salvava-se, assim, graças ao infortúnio de um guarda-costas presidencial e, sobretudo, graças a uma rara sensibilidade, visão e um sentido de Estado singular, um registo fundamental da história e da cultura deste país. Encontrava-me, pois bem no meio deste artigo, e já de regresso a Maputo, quando se deram os acontecimentos que recentemente paralisaram a cidade e, já agora, o meu texto. Nas leituras que imediatamente se fizeram à tendência, indiscutivelmente legítima, da maioria das pessoas foi de relacionar esses mesmos acontecimentos com o 5 de Fevereiro de 2008.

Apesar das motivações serem outras, contexto diferente, o que me veio à memória foi exatamente o 7 de Setembro de 1974.

Talvez, porque vivia, então, num dos subúrbios da cidade, pude viver e testemunhar algo que me marcaria para o resto da vida e que me ajudaria a perceber quão complexa é a natureza humana e o sentido real da psicologia das multidões. Se é verdade que muita coisa nos separa do que aconteceu nessa altura e do que as pessoas perseguiam, o povo é o mesmo. E é esse povo que invoca os versos do arrebatador poema "Saborosas Tanjarinas d'Inhambane", de José Craveirinha: E nos nossos tímpanos os circunjacentes murmúrios? Não é boa ideologia detectar na génese os indesmentíveis boatos? Uma população que não fala não é um risco?

Aonde se oculta o diapasão da sua voz? […] Quem é o mais super na meteorologia das infaustas notícias? Quem escuta o sinal dos ventos antes da ventania e avisa? Confundir o silêncio das pessoas, os seus murmúrios ou o seu pacifismo com ignorância e conformismo pode desencadear processos de consequências catastróficas. Cada povo tem a sua idiossincrasia. E este tem-no naturalmente. Não reage, acumula: dores, frustrações, humilhações, desconsiderações. Pacientemente, mas não resignadamente. Descobrir onde se esconde o diapasão da sua voz, como canta o poeta é, sem sombra de dúvidas, o desafio que esse mesmo povo coloca a quem o quer realmente perceber, a quem o quer efectivamente governar. Muito já se disse sobre o que aconteceu. E muito se dirá ainda, não tenho dúvidas.

Os balanços apresentam cifras preocupantes. Nas equações entre causas e efeitos, os indicadores acusadores cruzam-se nos ares no inflamado julgamento de quem é, ou não é, culpado. Nunca, como agora, na recente história do país, e tendo obviamente como referência a cidade de Maputo, o pacto entre governados e governantes foi tão posto à prova. Sinais dos tempos. Nada será como dantes, quer-me parecer. E contrariamente ao que se disse, apesar de popular, não foi uma revolta sem rosto. Além do mais, os rostos tinham voz, tinham sangue, tinham nome e tinham alma. Quando observava a indignação e a fúria dos que protestavam para as câmaras das televisões, desafiando quem os quisesse ver e ouvir, vieram-me também à memória, num poema justamente intitulado "Sobre a violência", os penetrantes versos do dramaturgo e poeta alemão, Bertolt Brecht: "Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. / Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem." E, para nossa infelicidade colectiva, teimamos em não aprender da nossa e da história dos outros: a violência gera quase sempre violência. E a violência física, visível e reactiva, raiando a barbárie, não é, e nem necessariamente a pior, nem a que unicamente deve ser condenada.

O poema de Brecht é, nesse capítulo, esclarecedor. No rescaldo de toda esta história, que julgo ser o início de algo que, forçosamente, quem de direito deveria saber ler e interpretar de forma mais sábia, tenho a convicção, mesmo que eivada de algum romantismo, que Samora e o seu guarda-costas teriam feito a diferença. Aquele, armado da sua sensibilidade e clarividência, com todos os defeitos que naturalmente tinha, daí os erros que cometeu e que o faziam humano, demasiado humano, como diria Nietzsche. E o outro mergulhado na humildade que ajudou a salvar a história de um lugar.

Contrariamente ao que aconteceu com ele, hoje, a cadeira também se partiu, mas ninguém quer assumir. E foi tudo isso que faltou decisivamente neste Setembro sangrento: sensibilidade, clarividência e humildade. Muitas civilizações cresceram e ganharam notoriedade e reconhecimento também à luz destes princípios e valores.

P.S. Já tinha terminado este artigo, quando tomei conhecimento que o Governo recuou nas decisões que geraram a revolta popular. Samora e o seu guarda-costas, onde quer que estejam, sorriram certamente.

Francisco Noa
in «O País», 10.09.2010