09/09/2010

Ainda vi outro caracol mas ele fugiu

Não só a educação é injusta como a justiça tem falta de educação. Esta semana tem sido quente (politicamente) com notícias, que a todos surpreendem, tanto na educação como na justiça.

Não leio folhetins nem vejo telenovelas. Por isso, não sei o que se passa no caso Casa Pia nem na confusão do Freeport. Nunca li nada sobre esses assuntos, para além de cabeçalhos, porque sabia que seria apenas uma parte da verdade, na melhor das hipóteses.

Mas, como estamos no Verão, desta vez li os resumos da imprensa sobre a decisão no caso Freeport. E lembrei-me de uma história de infância que rezava assim: uma mãe manda o seu filho, que era muito preguiçoso, apanhar caracóis. Ao fim da tarde ele aparece com apenas dois caracóis. Só dois!, disse a mãe. Ao que o filho replicou, eu ainda vi outro mas ele fugiu. Esta história lembra a decisão da Procuradoria sobre a falta de tempo para fazer perguntas a políticos. É assim que o povo a vê. Estou certo que as pessoas envolvidas estão acima de qualquer suspeita, mas o prestígio da justiça deu mais um trambolhão aos olhos de todos. E eu a pensar que tal seria impossível.

Há cerca de um ano a SEDES fez uma avaliação da qualidade da democracia e, para minha surpresa e angústia, a imagem da justiça parecia não poder ser pior. Uma justiça desprestigiada é sempre uma má justiça. Porque se não acreditamos na independência política dos seus agentes, se não acreditamos que ela é independente de interesses e se não acreditamos que a justiça é igual para ricos e pobres ou poderosos e fracos, então, está em causa o simples exercício da cidadania, é a vida democrática que é afectada. E os exemplos são sintomáticos.

É desumano deixar uma pessoa durante anos num limbo de culpabilidade sem nada acontecer. Se é um político, ainda tem algum benefício da dúvida perante a opinião dos amigos e conhecidos. Há sempre a ideia de que interesses partidários estão envolvidos. Mas ao simples cidadão tal pode acontecer, sem apoios de um partido político e sem dinheiro para se defender; e é uma verdadeira tortura psicológica durante anos. É infame.

Saberemos que a justiça em Portugal um dia funciona, se ninguém se lembrar do nome do procurador. Enquanto tal não acontecer, significa que a justiça não é justa.

A educação - outro problema calamitoso - também não deu boas notícias com a perspetiva do fim das reprovações. Há uns meses, numa conferência em S. Francisco na Califórnia, um professor americano já reformado, que escreveu muito sobre Espanha e também sobre Portugal, perguntou-me qual a razão dos maus resultados do ensino nacional. Depois de uma longa conversa em que mostrei que os recursos financeiros, humanos e materiais eram dos melhores da Europa, os resultados brilhavam pela ausência. A finalizar disse-lhe que boa parte da culpa também era deles, americanos. Perante a surpresa expliquei-lhe que no final dos anos sessenta (ou princípios de setenta) um ministro da Educação tivera a ingenuidade de mandar umas dezenas de pessoas estudar "ciências da educação" nos Estados Unidos. Ele interrompeu-me perguntando: não me diga que foram para Boston. Exatamente, disse-lhe. O meu amigo respirou fundo e calmamente concluiu: então, o caso é mesmo muito grave.

E é, de facto, muito grave. A filosofia das escolas de educação está patente há muitos anos na abordagem ao ensino em Portugal e os resultados estão à vista. Estou certo que a intenção da ministra é a melhor; li a sua entrevista e ouvi atentamente muitas das explicações que se lhe seguiram e não advogou (explicitamente) o fim administrativo dos chumbos. Desejou apenas pôr à discussão; aqui fica o meu contributo.

As reprovações são necessárias e não se avaliam, principalmente, pelos efeitos que têm nos alunos que chumbam. As reprovações são úteis para os alunos que passam porque estudaram. É o prémio; é para evitar a vergonha da reprovação que os alunos se aplicam mais. Qualquer um de nós (incluindo eu próprio) se lembra que esteve, normalmente pelos 14 anos, à beira de chumbar e só não terá acontecido pelo esforço final para evitar o vexame. É a cultura de responsabilidade que está em causa.

Educar é preparar para a vida. Não conheço melhor definição de educação. Essa preparação é não só técnica e científica, mas também ética e cívica. É ser capaz de lidar com o stress, com a pressão temporal e até com a injustiça. É ser capaz de definir objectivos, trabalhar por eles e alcançá-los. E esperar o reconhecimento por isso. Os exames e os resultados com aprovações, reprovações e com notas de zero a vinte foram necessários e são importantes. Aguentar a pressão de um exame faz também parte da aprendizagem.

Na vida estamos sempre a aprender e estamos sempre a ser avaliados. Tal como devia ser na escola. Há duas grandes diferenças entre a escola e a vida. Na escola, primeiro temos a lição e depois o exame. Na vida primeiro temos o exame e só depois temos a lição se percebermos onde errámos. Em segundo lugar, na escola aprendemos à custa da experiência de outros; na vida aprendemos à nossa custa, à custa dos nossos erros. Por tudo isto é que a escola é o meio mais eficiente para nos preparar para a vida.

Nós, que somos pais, várias vezes ouvimos os nossos filhos queixarem-se da injustiça de uma avaliação. A minha resposta era sempre a mesma: fala com o professor e tenta apresentar as tuas queixas, mas se no fim ficar tudo na mesma, aprendeste que a injustiça existe e vais vê-la todos os dias no resto da tua vida. Aprendeste mais uma coisa.

Sem justiça não há cidadania nem vida democrática. Sem uma boa escola não há justiça social.

Hoje temos um ensino, porque laxista, mais injusto do que há 40 anos: os filhos dos mais pobres ficam condenados a serem pobres. Não sou especialista em educação e sei ainda menos de justiça. Mas sei ver os resultados. Da mesma forma que não sei cozinhar decentemente, mas sei apreciar uma boa refeição.

Luís Campos e Cunha, Professor universitário
in «Público», 06.08.2010