03/03/2010

O "jotinha" grisalho

Caro dr. Mário Soares:

Os seus artigos têm provocado desilusões faraónicas. Roma está a arder, e V. Exa. anda a dizer que Nero é fixe. Os mais velhos dizem-me que V. Exa. é o progenitor dourado da nossa democracia. Eu não gosto de desautorizar a brigada do reumático, mas tenho de dizer uma coisa: V. Exa. não tem agido como o pai da democracia.

Do alto do rochedo que é o seu prestígio, o dr. Soares tinha o dever de ser um senador a pairar acima da politiquice partidária. O dr. Soares devia estar preocupado com as regras institucionais, que estão acima de qualquer partido. Porém, V. Exa. tem atuado como se fosse um mero apparatchik do PS.

Caro dr. Soares: o seu último artigo do "Diário de Notícias" parece que foi escrito por um 'jotinha'. É isso mesmo: V. Exa. tem sido o 'jotinha' grisalho do PS. Esperava-se mais, dr. Soares, muito mais. Esperava-se que V. Exa. colocasse o espaço público acima da sua tribo. Esperava-se que V. Exa. colocasse as regras institucionais que garantem a transparência pública acima do 'seu' PS. José Sócrates rasgou todas essas regras, mas V. Exa. assobia para o lado. Roma arde, e V. Exa. abraça Nero.

No seu artigo, V. Exa. afirma que Sócrates não pode ser derrubado, porque "foi relegitimado há pouco tempo pelo eleitorado". Pior: V. Exa. afirma que as últimas sondagens (favoráveis a Sócrates) comprovam a falsidade das acusações que resultam das escutas. Ora, os seus argumentos não fazem qualquer sentido, dr. Soares. A ideia de que uma sondagem positiva 'absolve' um plano para controlar a TVI é um absurdo. Se aplicasse este argumento à Itália, o dr. Soares teria de elogiar Berlusconi. Depois de todas as suas trapaças, Berlusconi ainda tem uma aprovação de 50%. Como é óbvio, essa aprovação popular não legitima as acções ilegítimas de Berlusconi. Antes das sondagens, antes das eleições, a democracia assenta em regras institucionais. Berlusconi rasgou essas regras em Itália. Sócrates está a rasgar essas regras em Portugal.

V. Exa. afirma que Sócrates foi relegitimado nas urnas, e que, por isso, não pode ser demitido.

Meu caro dr. Soares, este argumento revela uma cultura política primária e deficitária. Há um défice institucional na forma como V. Exa. pensa a democracia. Uma democracia constitucional não começa nem acaba nas eleições. Uma vitória eleitoral não coloca um político acima do bem e do mal. A vitória eleitoral de Sócrates não pode branquear actos ilegítimos, como as tentativas de controlo de grupos de media. Antes de rimar com eleições, a democracia rima com transparência institucional. E, meu caro dr. Soares, José Sócrates é uma criatura política opaca, que recusa submeter-se ao rigor da transparência. Sócrates mentiu ao Parlamento, e agora recusa explicar essa mentira ao mesmo Parlamento.

No fundo, o dr. Soares vê a democracia como um mero combate entre partidos. Vendo o 'seu' PS em dificuldades, V. Exa. colocou as penas da tribo na cabeça, e partiu logo à caça de escalpes. Com a sua idade, V. Exa. já tinha obrigação de perceber que isso é irrelevante, sobretudo nesta altura difícil. Nas épocas de tormenta, as democracias necessitam de senadores institucionais. Medeiros Ferreira tem sido esse senador. Ao invés, o dr. Soares tem sido o porta-voz de um primeiro-ministro ilegítimo.

V. Exa. não é o pai da democracia. V. Exa. é só o pai do PS.

Henrique Raposo
in «Expresso», 20.02.2010