22/03/2010

Alterações climáticas

Os dados acima reproduzidos, divulgados no Economist de ontem, foram preparados pelo Met Office Hadley for Climate Change, sedeado no Reino Unido, uma das instituições europeias líderes no estudo das alterações climáticas.

Do lado esquerdo, em azul, vêem-se as variações das médias das temperaturas em terra. A linha castanha indica as tendências dessas variações anuais.

Do lado direito, em azul, estão as variações das médias das temperaturas nos oceanos. A linha castanha indica as tendências dessas variações anuais. A linha laranja, mesmo por cima, indica as tendências relativamente à temperatura do ar mesmo por cima do mar.

Claramente, algo se passa no mundo desde pelo menos o final dos anos 70. E não são só estes dados, publicados ontem, que o indicam. O norte-americano Albert Gore, o antigo vice-presidente de William Clinton, ganhou um prémio Nobel por conduzir uma campanha, centrada num filme que paguei para ver, em que foca nas tendências em termos da componente de dióxido carbono na atmosfera terrestre.

Concumitantemente, nos últimos dez anos, pessoas, governos e empresas começaram a adotar medidas no sentido de mitigar os efeitos altamente poluentes do nosso atual estilo de vida.

Olhemos ao que se passou no mundo nos últimos 35 anos.

Essencialmente, a Guerra Fria acabou, o Brasil, a China e a Índia surgiram como gigantes industriais e tecnológicos, e a população do mundo quase que duplicou.

Consideremos agora Portugal e em maior detalhe.

Para um português com mais do que 45 anos, 35 anos é mais ou menos desde que alguns militares que fizeram um pronunciamento em Portugal acabaram com o projeto colonial português entregando o poder aos movimentos de guerrilheiros da altura e assim despacharam Angola e Moçambique e o resto.  Em Portugal, os comunistas estiveram a um fio de tomar o poder e, com a ajuda de uns valentes sacos de dinheiro dos nossos amigos alemães, de Frank Carlucci e dos outros militares, estes os não comunistas,  Mário Soares adquiriu as suas credenciais degladiando-se com Cunhal e ajudando a inaugurar a III república. Com um algo doentio complexo de esquerda, a III república proclamou-se “socialista” e democrática.

Economicamente, a III república tem sido basicamente um desastre. Logo no início, com uma justificação sócio-política, expropriou praticamente tudo o que interessava às classes previamente abastadas, acompanhadas por vagas ameaças de mandados de captura e assédio a sério. Champalimaud, Mellos e Espíritos Santos refugiaram-se na Suíça, Espanha e Brasil e quase que tiveram que começar do zero. Aqui, aumentaram-se generosamente os salários – 13º mês, subsídio de férias, emprego garantido para toda a vida e o maior sector público de sempre. Mediante a constante desvalorização do escudo e o aliciamento, com um custo significativo, do envio dos fundos ganhos no estrangeiro por portugueses emigrados, a economia foi-se aguentando até ocorrer um pequeno crash, entre 1983 e 1985. Foi nessa altura que Mário Soares um dia foi à televisão antes do Natal e disse aos portugueses que trabalhavam que o subsídio de Natal desse ano ia ser comido como imposto. Um pouco como está a acontecer agora com os chamados “bónus”.

Por essa altura, ocorreu a adesão à então Comunidade Económica Europeia, que foi negociada por Soares mas aproveitada por um então praticamente desconhecido Aníbal Cavaco Silva. Durante os quinze anos que se seguiram, choveu dinheiro em Portugal.

Foi uma verdadeira festa.

Os dois mandatos consecutivos de Cavaco Silva foram curiosos, pois se por um lado se assistiu a um enorme acrescento na infra-estrutura pública, e a um aparente regresso a uma economia um pouco mais empresarial, em que surgiram dois bancos privados de raíz e se iniciou a privatização de parte do que o que os comunistas tinham nacionalizado em 1975, na realidade o que sucedeu foi que o aparelho de Estado, e especialmente as despesas públicas, e ainda mais os impostos, dispararam quase desmesuradamente. Foi Cavaco Silva que introduziu o IVA, que instituiu aumentos de ordenados fantásticos para os funcionários públicos e, quase no fim do seu mandato, negativamente simbolizado por um protesto contra um aumento na portagem em uma das pontes que serve Lisboa, e ainda por não ter concedido tolerância de ponto num dia de carnaval, Cavaco muda fundamentalmente as regras de financiamento do Estado.

Até então, o governo financiava-se essencialmente junto da banca portuguesa, o que tinha um efeito de crowding-out em termos da procura doméstica do dinheiro. Isso significava que o crédito no país era extremamente caro e limitado. O crédito ao consumo era proibitivo praticamente proibido, e financiar uma casa era a 12 anos e custava entre 20 e 25% de juros ao ano – o leitor lembra-se?

Ao passar a financiar-se no estrangeiro, de repente a banca portuguesa tinha uma fonte quase inesgotável de dinheiro, mas sem saber o que fazer com ele. A solução? emprestá-lo – ou melhor, nalguns casos impingi-lo – aos consumidores e empresas. Simultaneamente, ao aderir ao Sistema Monetário Europeu, que desembocaria em 2002 na extinção do Escudo e a adopção do euro, as taxas baixaram para níveis impensáveis apenas quatro anos antes.

Foi a segunda festa, ainda maior que a primeira, pois por esta altura os portugueses já se tinham habituado à boa vida. Mas pela primeira vez em séculos, os portugueses tiveram a ilusão de que eram “europeus”. Toda a gente comprou casa, comprou carro, passou a aquecer a casa no inverno, passou a ir de férias uma e duas vezes por ano ao estrangeiro, passou a usar roupa de marca, passou a andar de telélé na mão, televisão a cores na sala e no quarto. Quase duma assentada, criaram-se gigantescos centros comerciais por toda a parte, o maior dos quais chama-se Freeport.

Rapidamente, os bancos portugueses tiveram tanto sucesso nos seus esforços que também eles começaram-se a financiar no estrangeiro. A certa altura, dezenas de milhões de euros por dia fluiam para Portugal em empréstimos públicos e privados.

Mas o que aconteceu entretanto na indústria e no comércio? Por via da entrada maciça de produtos europeus, sucedidos por produtos chineses após a adesão da China à Organização Mundial do Comércio, Portugal passou a importar quase tudo e a preços que não havia uma empresa que conseguisse bater. A partir do fim dos anos 90, assistiu-se à crescente desindustrialização do país nos têxteis, na pesca, na agricultura, no calçado. Ineficazes, e por causa da forma como as leis operam em Portugal, as empresas não faliam: vegetavam numa longa, infindável agonia. A forma de combate normal a um mercado de trabalho insuportavelmente rígido e com férreas leis que protegem os empregados para além de quase qualquer lógica era convidar pessoas com 40, 50 anos de idade para a “reforma”. Cá chamam-lhes “reformas antecipadas”. Isto sem considerar as situações, amplamente divulgadas, de pessoas que, inexplicavelmente, acumulam duas, três, quatro reformas. O rol de “reformados” disparou e, para fazer face à crescente despesa, aumentaram-se mais os impostos e os descontos forçados.

E entretanto os portugueses, que se tornaram ricos, e já praticamente não tinham filhos, deixaram de fornicar ao nível mínimo para manter uma população sustentável. Para além do aparecimento das empregadas ucranianas, dos dentistas brasileiros e dos médicos angolanos (todos bem-vindos, atalhe-se) criou-se uma situação em que daqui a dez anos, cada português que trabalhe terá que sustentar com os seus impostos um reformado. Na geração do meu pai o rácio era de 10 para 1. Incapaz de atrair investimento, o governo pagou milhões à Volkswagen e a outras empresas para abrirem fábricas em Portugal.

Entretanto, e ao mesmo tempo que a manufatura, a indústria e o comércio implodiam, e os níveis de emprego eram mantidos artificalmente, citavam-se dogmas indecifráveis para o cidadão comum: que Portugal estava-se a deslocar para uma economia de conhecimento, para uma produção com valor acrescentado, para uma nova era tecnológica, para uma economia “limpa”.

Enquanto tudo era dito, silenciosamente, o governo engordava, aumentava os impostos e a dívida pública e privada e pública explodiam.

Entra José Sócrates em cena.

Em boa verdade, quando José Sócrates ganha a sua maioria absoluta em 2004, os males que acima descrevi,  já estavam basicamente em fase quase terminal.

Mas como é típico dos políticos portugueses, ele fez o que todos fazem quando confrontado com um défice medonho: simplesmente, aumentou os impostos.

E a coisa teria corrido bem mais uns anitos, não fosse a circunstância de os americanos se terem metido naquele inferno chamado “a crise do sub-prime”, que começou no final de 2007 mas que abalou o mundo no final de Setembro de 2008, quando, no espaço de duas semanas, a quase totalidade do sistema financeiro mundial, liderado pelos Estados Unidos, entrou em colapso.

A resposta do governo português foi gastar o que tinha e o que não tinha, em nome de coisas nobres como a estabilidade, a coesão social e outras coisas. No fim de 2009, a taxa de desemprego estava nos 10%, o défice do orçamento 9.3% do produto nacional bruto português e as taxas de endividamento público e privado verdadeiramente astronómicas. O incêndio da falência de dois bancos foi apagado com uma loucura em termos de dinheiro (não se sabe ainda ao certo esse velor, que é na ordem dos milhares de milhões de euros). As exportações caíram 20%.

Para além dos constantes escândalos e suspeitas e amigos duvidosos – e isso já dava pano para mangas, – o mandato de José Sócrates tem sido marcado por algumas caraterísticas peculiares, algumas em contradição umas com as outras.

Por um lado, ele é o primeiro ministro das grandes obras que nunca mais se fazem: mais pontas sobre o Tejo, um novo aeroporto primeiro na Ota e depois não sei aonde no outro lado do rio junto duns campos de arroz, de auto-estradas de toda a parte para toda a parte, de uma linha de comboio cuja lógica eu simplesmente não entendo, de subsídios para assegurar “padrões mínimos de riqueza.

É o ministro das iniciativas com nomes sonantes, desde o “Plano Tecnológico” às “Novas Oportunidades”, o (caríssimo) programa do computador Magalhães, da reforma dos procedimentos administrativos do Estado, da desburocratização.

É o ministro da ecologia, das energias renováveis e limpas, do uso do aquecimento solar, dos benefícios fiscais para as renováveis, dos parques eólicos, dos carros eléctricos. Quer que Portugal seja líder mundial nesta área. Acabou de lançar a iniciativa misteriosamente apelidade de “re, new,able”.

Por outro lado, ele é suposto endireitar as contas públicas de alguma forma. Face ao rescaldo de 2008, ele praticamente não fez nada em 2009 para além de atirar dinheiro à fogueira (havia eleição em finais de Setembro, que ele venceu com maioria simples) e agora aumentou novamente os impostos, em toda a linha. Ainda quer fazer alguns dos projectos acima referidos, e basicamente não vai fazer nada com as despesas públicas, usando em vez disso uns últimos cartuchos que sobraram de 1975, vendendo (a quem, não sei, mas não deve ser a portugueses) o que resta das empresas públicas em que o estado mantém participações.

Ora, eis o paradoxo, que desdobro em dois:

1. A criação de mecanismos para a produção de energias alternativas, sendo totalmente meritória, é quase ruinosamente cara, numa altura em que em todo o mundo os combustíveis fósseis continuam a ser muito mais competitivos do que as alternativas (e Portugal fingir que não é assim é patético, mesmo adoptando medidas oportunistas e ruinosas dos cidadãos tais como artificialmente e exageradamente tributar o preço da electricidade e dos combustíveis que em Portugal são dos mais caros da Europa perante o poder de compra do consumidor português).

Portugal não só não dispõe de capital para investir neste esquema, como, mesmo que o faça, o custo por unidade de custo de energia no fim será tão caro que não há indústria que resista a estes preços. Não vão conseguir competir. Ou seja, isto de ser líder nas energias vem com um custo que terá que ser pago agora, e vai ser caro, no contexto das prioridades que se apresentam agora, para benefícios que podem representar pouco ou nada em termos de competitividade.

2. O segundo paradoxo é parcialmente ilustrado pelo quadro acima reproduzido: Portugal ainda está inserido no planeta Terra, e em que é menos que 1 por cento da população europeia e uma verdadeira insignificância em termos da população mundial, que já vai nos cerca de 6200 milhões de pessoas. Os portugueses são 10 milhões. A actual geração defronta-se com desafios titânicos em termos de pôr a casa em ordem e de competir numa economia em que os bens e capitais (ainda) fluem livremente. Um Portugal limpo e verde e ecológico é excelente – mas será competitivo, quando temos uma Ásia que ainda não tem regras e uns EUA que estão ainda a começar a discutir, vagamente, o assunto? será que o que 10 milhões de portugueses vão fazer vai afectar de alguma forma as estatísticas que acima estão indicadas? e a que custo?

Eu acho que tenho o azar de pertencer à primeira geração em muitas décadas que suspeita que a geração que vem a seguir, a dos nossos filhos, vai herdar um mundo que pode ser pior do que o que o meus pais me deixaram.

E isso é muito triste.

António Botelho de Melo
in Ma-Schamba, 20 de Março de 2010