19/01/2010

A grande birra

Em breve iremos assistir, no nosso país, a um conflito explosivo entre o Governo e uma parte da sociedade. De um lado a necessidade do Governo aprovar um orçamento de austeridade que contrarie o crescente défice público - aumentando provavelmente os impostos e reduzindo a despesa pública -, o que irá obrigar a novos sacrifícios. Do outro lado temos uma parte da população que, nos últimos anos, se habituou a consumir facilmente, vivendo na ilusão de que a riqueza não provém do esforço e do trabalho. Este conflito não surge por acaso, uma vez que se criou a fantasia de que o bem-estar e a felicidade, em lugar de serem procurados pelo indivíduo, deveriam ser reivindicados ao Estado; tratando-se de um direito.

Dito de outro modo, a sociedade infantilizou-se e o Estado assumiu um papel paternalista de quem tudo se espera.

Há mais de trinta anos que o conteúdo do discurso político fala quase exclusivamente em direitos, olvidando os deveres. Ao longo do tempo criou-se, no inconsciente colectivo, a ideia errada de que qualquer frustração do indivíduo se devia a um direito que ainda não estava conquistado, e a solução libertadora residia em reivindicá-lo. Confunde-se, pois, direitos com aspirações. E, mesmo que sejam dadas todas as oportunidades, se porventura houver alguém que não alcança uma aspiração, isso raramente é atribuído a um fracasso pessoal, mas a uma discriminação, mesmo que muitas vezes nem sequer tenha havido qualquer esforço para se obter sucesso.

O profundo desequilíbrio que se criou entre direitos e deveres é uma das causas do nosso atraso e da falta de competitividade. Porém, raramente se ouve no discurso político o elogio do dever: o dever de valorizar o trabalho, ser justo, solidário, cumpridor, honesto, responsável, etc. Estas são virtudes associadas a uma visão do mundo antiquada, ultrapassada e opressora do homem. Mas, ao contrário do que se pensa, estes são os alicerces de uma sociedade madura, responsável e que se projecta não apenas no presente, mas também no futuro.

O paternalismo patológico, por parte do Estado, é inimigo da solidariedade, tornando as pessoas excessivamente autocentradas, preocupando-se mais em exigir o que merecem do que com o que podem oferecer aos outros. Somos confrontados com uma camada social cada vez mais infantilizada, dependente de subsídios do Estado, incapaz de se bastar a si própria e de criar riqueza que possa ser partilhada com os outros. Em vez de se incitar a ambição positiva e autonomia, fomenta-se a miséria e a regressão a um estado de dependência.

A nossa sociedade não tem vindo a ser preparada para os sacrifícios que a presente crise económica irá obrigar. Pelo contrário, foi iludida com um consumismo desenfreado, sustentado por um crédito abundante que agora acabou. Com isto disseminou-se uma síndrome de baixa tolerância à frustração, surgindo a percepção de que tudo se poderia alcançar de forma fácil e instantânea.

Diante da nossa actual realidade económica e social, é fundamental que haja coragem política para se explicar ao povo que a riqueza, a justiça e o progresso não podem ser alcançados apenas com o esforço de alguns. Todos devem participar nesse projecto; todos temos a obrigação e o dever de lutar para que Portugal se torne num país mais rico e desenvolvido.

Não obstante este facto, alguém terá de reverter esta hipnose colectiva. Alguém terá de explicar que tudo foi uma fantasia; tudo foi um engano. Chegou a altura de abandonar o discurso, alicerçado na esperança pueril, de que tudo irá melhorar. É tempo de fazer sacrifícios. Mas, se a sociedade foi infantilizada, isso não se aceita facilmente sem que haja uma grande birra.

Pedro Afonso, Médico psiquiatra
in «Público», 19.01.2009