15/08/2010

Umbigo socialista

Caro dr. Mário Soares, este telegrama ultrameganeoliberal tem um propósito simples: provar que V. Exa. não percebe nada da União Europeia (UE). Nada. Aliás, o meu caro amigo está, desde já, chumbado a Integração Europeia.

V. Exa. estabelece sempre uma ligação direta entre a UE e o Estado social. Na sua cabeça, a UE é sinónimo de Estado social. Pior: é sinónimo do Estado social que existe aqui no sul da Europa. Como é óbvio, o seu raciocínio está errado. A UE, meu caro, não mete aquele burocrático bedelho nos assuntos do Estado social. A construção do Estado social é uma tarefa que cabe, em exclusivo, aos Estados. É por isso que não existe um modelo social europeu, mas sim diversos modelos. O modelo nórdico, por exemplo, tem uma natureza liberal, enquanto o modelo sulista tem um carácter socialista e corporativo. O Estado social é, portanto, uma peça local, e não federal. A verdadeira atividade da UE incide sobre uma coisa que está a milhas ideológicas do Estado social, a saber: o mercado único. O coração da UE é liberal, e não social, meu caro Mário. E sabe porquê? Porque o comércio livre é a primeira linha de defesa contra o fantasma do nacionalismo. Se V. Exa. não entende isto, então V. Exa. não compreende a natureza da UE, e a sua 'Europa' é apenas uma extensão do seu umbigo ideológico.

V. Exa. devia prestar mais atenção aos socialistas franceses, que sempre rotularam a UE de 'inimiga' do Estado social francês. Não por acaso, os socialistas gauleses têm um discurso soberanista e até xenófobo ("canalizador polaco"). Claro que esta xenofobia de esquerda é disfarçada pelos constantes gritos contra o 'neoliberalismo'. Quando xingam o 'neoliberalismo', os esquerdistas franceses (e portugueses) deixam de ser nacionalistas, e passam a ser querubins do santo esquadrão que combate a globalização, ou coisa assim. Maravilhas da semântica. Mas, meu caro Mário, não se iluda: o Estado social é, neste momento, um motor do nacionalismo. Na segunda metade do século XX, a UE foi feita contra o nacionalismo de direita. Agora, a UE será feita contra este nacionalismo de esquerda.

O meu caro amigo criou a III República com base em duas narrativas fundadoras: Portugal devia estar no coração da UE, e devia construir um modelo social francês. Ora, em 2010, podemos dizer que as duas narrativas estão em rota de colisão. Ou saímos da UE para mantermos o Estado social com sotaque francês, ou ficamos na UE e reformamos o estado social (adotando um sotaque nórdico ou polaco). V. Exa. vai ter de escolher: ou está com a Europa, ou está com o nacionalismo dos direitos adquiridos.

Henrique Raposo
in »Expresso», 23.07.2010