Viúva de Agostinho Neto vai ser julgada por difamação em Lisboa
Divergências sobre a dimensão e natureza dos acontecimentos de 27 de Maio de 1977 em Luanda, considerados uma tentativa de golpe de Estado contra o então presidente Agostinho Neto, levaram a que a viúva deste, Maria Eugénia Neto, tenha sido acusada de difamação pela historiadora Dalila Cabrita Mateus, co-autora de uma obra sobre aquela época.
Em causa estão declarações em Janeiro de 2008 ao «Expresso» com Eugénia Neto - que conheceu em Lisboa no início dos anos 50 o então jovem angolano que cursava Medicina - a classificar a historiadora como "desonesta" e "mentirosa", a propósito da versão que veicula sobre o 27 de Maio.
Dalila Mateus, em parceria com Álvaro Mateus, escreve em «Purga em Angola - O 27 de Maio de 1977» que o número de mortos causados pela repressão resultou da "preocupação de Neto e dos seus" pelo poder. O livro menciona que a "purga no MPLA atingiu enormes proporções" e indica 30 mil mortos como o número de vítimas que teria custado a Agostinho Neto para neutralizar os seus adversários.
Interrogada sobre este número, Eugénia Neto exclama: "Isso é mentira. Esta senhora é desonesta, é mentirosa", referindo-se à historiadora. Esta interpôs recurso junto da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) e apresentou queixa por difamação nos tribunais. Em Fevereiro, a ERC deliberou a favor de Dalila Mateus na questão da "reputação e boa fama".
Um tribunal de Lisboa considerou agora que as declarações da viúva de Neto, que possui dupla nacionalidade, podem prefigurar o crime de difamação agravada, sendo pronunciada para julgamento. Segundo alguns media angolanos, Eugénia Neto escusou-se sempre a prestar declarações na fase de investigação.
Mas, para além das divergências sobre um dos momentos marcantes da história angolana após a independência de 1975, em causa está também um debate que atravessa este país africano, como a própria Eugénia Neto recordou na entrevista ao «Expresso» e que teria no seu marido o protagonista de uma das perspetivas. Agostinho Neto seria o porta-voz de um projeto moderado, da "concórdia" e de uma Angola negra e mestiça, enquanto o grupo do golpe - Nito Alves e José Van-Dúnem - eram pela "catequese política", por uma Angola negra, "uns jovens imaturos" e "ambiciosos pelo poder".
Nito Alves e José Van-Dúnem foram acusados de fracionismo em Outubro de 1976 e, segundo se lê na obra de Dalila Mateus, "existia o sério risco de conquistarem os principais lugares de direcção" do MPLA no congresso previsto para finais de 1977. Uma das teses de «Purga em Angola» é a de que o 27 de Maio foi um "contragolpe" do círculo de Agostinho Neto para impedir que o seu poder e influência fossem postos em causa. Para Eugénia Neto foi um ato de "imaturidade" do grupo de Nito Alves.
Abel Coelho de Morais
in «Diário de Notícias», 21.03.2010