O papa Bento XVI tem a oportunidade única de ficar na História e de subir ao Céu: abolir o celibato, uma disposição retrógada e "inconstitucional" - o mestre não a impôs aos seus discípulos. Fazendo isso, faria o clero descer à Terra, viver a vida de todos e levaria a que os seminários católicos deixassem de ser covis de recalcados e criminosos que se disfarçam sob as vestes de padre.
Se o papa não o fizer, a bola de neve não deixará de crescer e a Igreja Católica acabará crucificada.
É um debate explicado no «Público»:
No «Le Monde» de 5 de Março, o teólogo Hans Küng era claro na proposta: para lutar contra a pedofilia é preciso abolir o celibato obrigatório, "raiz de todos os males". Este tornou-se "um pilar essencial do "sistema romano"" e o clero está "completamente separado do povo cristão". Há quem conteste: se o problema fosse o celibato, teríamos que falar de conjugalidade e não pedofilia.
Küng, teólogo suíço-alemão proibido, em 1979, de ensinar em nome da Igreja Católica, admite que é "incontestável" a existência de abusos sexuais em outros âmbitos: "Nas famílias, escolas, associações e igualmente no interior de igrejas onde não existe a regra do celibato" - nas últimas semanas, vieram a público, na Alemanha, casos em igrejas protestantes.
Poucos dias depois de Küng, o cardeal Cristoph Schonborn, arcebispo de Viena, admitia que era preciso debater tudo: formação do clero, desenvolvimento pessoal, celibato. O facto de Schonborn ser próximo de Bento XVI fez aumentar a polémica sobre a relação do tema com a pedofilia. Vozes do Vaticano afirmaram que o celibato não está em causa. O Papa dizia, numa mensagem a um congresso sacerdotal, que ele é "sagrado".
No Le Monde, Küng diz que os casos de pedofilia não são só um enorme dano na imagem da Igreja, como também revelam "a crise profunda com que esta se debate". O teólogo adianta mesmo que esta crise é a expressão estrutural "mais impressionante da relação crispada que liga a hierarquia católica com a sexualidade, a mesma que determina a sua relação com a questão da contraceção e outras".
Küng evoca depois o Novo Testamento. Jesus e Paulo não casaram para ficar "ao serviço da humanidade" mas, no Evangelho, o celibato é uma vocação "livremente consentida" e não uma lei universal. Cita textos em que se pede que qualquer líder das primeiras comunidades seja "irrepreensível, marido de uma só mulher". E conclui: "É o celibato erigido em regra que contradiz o Evangelho e a tradição do cristianismo primitivo. Convém, por isso, aboli-lo."
Antonio Autiero, um dos nomes de topo da teologia moral, que ensina na Universidade de Münster (Alemanha), onde Ratzinger ensinou antes de ser bispo, diz que "não há uma relação monocausal: nem todos os célibes são pedófilos nem todos os pedófilos são célibes".
A questão da maturidade
De passagem por Lisboa, Autiero afirma, em entrevista ao «Público», concordar com Küng na perspetiva de que "o sistema do celibato coloca o desafio de como desenvolver os itinerários educativos de modo a que a maturidade sexual possa ser verdadeiramente conseguida". O próprio Vaticano, acrescenta, está consciente do facto, porque as congregações da Doutrina da Fé e do Clero "voltam a este tema periodicamente".
O psicanalista João Seabra Diniz observa, a partir dos jovens que têm problemas com o exercício da sexualidade. "Quando são de ambiente cristão, essas dificuldades, que podem ser várias, provocam intensos sentimentos de culpa e de ansiedade. A instituição do celibato e a ida para um lugar onde não há sexo aparece-lhes como uma boa solução."
Mas o celibato, "escolha exigente mesmo para homens equilibrados", pode ser uma situação "causadora de ansiedade e desequilíbrio para quem já traz problemas", diz. "O equilíbrio pessoal e o autocontrolo tornam-se cada vez mais difíceis".
A própria atividade de padre, de contato próximo e frequente com pessoas em situações de dependência afectiva, mais vulneráveis, acaba por trazer "um forte envolvimento afetivo", que pode ficar pela "dedicação" à pessoa em causa mas pode também, a partir de dado momento, entrar num "caminho sem regresso".
Seabra Diniz explica que, nesta fase, as caraterísticas dos problemas iniciais condicionarão o que pode acontecer: envolvimento afetivo com uma mulher, com mais ou menos intensidade, e consequências; "uma ligação afetiva mais ou menos passional com um jovem, que igualmente pode ter ou não passagens ao acto homossexual; ou a manifestação de outros desequilíbrios, talvez até aí desconhecidos, que levem a situações de pedofilia típica". O psicanalista conclui: "Sabemos que, infelizmente, todas estas situações se têm verificado".
António Marujo
in «Público», 21.03.2010