Tal como cada um de nós, o PEC tem pecados e virtudes. A sua principal virtude, segundo tudo indica, é ter convencido Bruxelas e os ministros das Finanças dos nossos parceiros na União Europeia. Ou, pelo menos, foi suficiente para evitar o contágio que vinha da Grécia. Veremos se dura. Mas se o PEC é aceitável para os outros, pode não ser o melhor para os portugueses. Ou seja, pode ter alguns pecados.
Não haja dúvida: o PEC vai doer, a cada português, mas a alternativa de nada fazer seria ainda pior, para cada um e para todos. No entanto, poderia ser menos doloroso obtendo os mesmos resultados. Mas que fique claro, em qualquer circunstância, iremos sempre sofrer todos. De quem é a culpa? A culpa, antes de mais, é de quem tem tido a responsabilidade de governar nos últimos dez anos, digamos.
Desde 2001, primeiro grande sinal de desorientação orçamental, que todos são responsáveis. Desde logo, o governo (minoritário) de Guterres, que nos deixou o défice acima dos 4%. Depois, o governo do PSD-CDS, que fingiu que equilibrou as contas com receitas extraordinárias que agravaram, a prazo, ainda mais o problema. Em 2005, o défice orçamental rondaria os 7% (*), não fossem as medidas aprovadas em Maio e explicitadas num PEC a 5 anos (e não apenas a 4). Com base nessas medidas, em apenas dois anos, conseguiu-se baixar o défice para menos de 3%, sem receitas extraordinárias. Declarou-se "casa arrumada" e, em 2008, entrou-se no laxismo, com receitas extraordinárias, crise e eleitoralismo, que nos deixaram com um défice de 9,4% do PIB (com o novo PIB nominal), no ano passado. Passámos de 4 para 7 e para 9,4%, como resultado dos últimos dez anos.
Alguns protestam com o congelamento salarial e a redução dos apoios sociais. Mas esses são também aqueles que sempre combateram a consolidação orçamental: agora não há mais nada a fazer. Ou seja, a brutalidade do que vem aí é inevitável, em grande medida, porque no passado não houve excedentes orçamentais. Quem sempre pugnou pelo laxismo é agora politicamente co-responsável com a dureza da inevitabilidade do que aí vem.
Mas há alguns pecados neste PEC. Antes de mais e que fique claro, há subida de impostos. Não vale a pena escamotear a questão, entrar em linguagem cifrada ou em jogos de semântica: o IRS aumenta, como todos (ou praticamente todos) iremos ver e pagar. Para o mesmo rendimento bruto, uma família que ganhe pouco mais do que o salário mínimo, com as novas regras, vai pagar mais impostos. E a isso chama-se aumentar impostos. Por aumento de taxa ou por menores deduções fiscais de saúde ou educação, é irrelevante, paga-se mais. Dizer o contrário é perder credibilidade.
Segundo pecado: o adiamento de alguns dos grandes investimentos públicos não contempla adiar o TGV para Madrid e a nova ponte sobre o Tejo. Ou seja, o exemplo mais acabado de desperdício não foi cortado. Se há coragem a menos ou casmurrice a mais, não sei, mas é um péssimo exemplo. É natural que os outros ministros das Finanças europeus não se queixem, porque o negócio é bom para alemães ou franceses. Se Portugal, através do seu governo legalmente constituído, deseja fazer asneiras, para quê mais aborrecimentos, tanto mais que os beneficia. Para garantir os pagamentos dos investimentos no TGV-Madrid e os prejuízos de exploração anuais teremos menos despesa social em educação, na saúde e reformas mais baixas. As estradas secundárias ficam numa miséria, mas teremos um comboio de luxo. Quem não protesta, tem o que merece.
O terceiro pecado do PEC é não ter optado por subir o IVA para 21%. Os produtos afetados não são os essenciais, como a alimentação e os medicamentos, e seria um estímulo à poupança. Gastar menos é a única maneira de, de uma forma legal, pagar menos IVA. Por outro lado, o aumento do IRS induz os melhores das gerações mais novas a saírem do país, porque em Londres ou Nova Iorque ter um salário de 5 mil euros é sinónimo de sucesso e não de ser rico.
Por tudo isto, quarto pecado, para travar a escalada do endividamento público, vai haver um programa de privatizações. Estas privatizações não são ditadas por uma estratégia sobre o papel do Estado na economia, antes se vende em estado de necessidade. Os mercados não estão bem, a nossa reputação está mais arruinada do que nunca, pelo que se venderá por baixo preço. Também isto é consequência de laxismos antigos e dos novos investimentos públicos de megalómanos.
Não posso deixar de pensar que os jornais se enganaram ao afirmarem que o Governo vai gastar mais 400 milhões em eólicas. Essa energia saí caríssima, pagamos todos nós e as nossas empresas ficam em desvantagem competitiva face às do resto do mundo. Deve haver engano, porque o desperdício e o absurdo não pode ser assim tão grande; a culpa é dos jornalistas, certamente.
O PEC parece ter sido recebido com complacência pela Europa e pelos mercados. No entanto, os portugueses vão pagar caro as más políticas dos últimos anos, em particular, desde 2008. A opinião pública sempre pensou que os problemas do Estado eram problemas dos políticos e que o povo não tinha nada a ver com isso. É, e era, errado, como todos vamos saborear. De qualquer modo, para os mesmos resultados, o PEC poderia ser mais inteligente e poupar alguns sacrifícios aos portugueses se as sugestões acima (e outras que aí virão) fossem seguidas. Não alterar o IRS, subir antes o IVA e o imposto sobre as mais-valias (como proposto), cancelar projetos megalómanos e reduzir a despesa (como sugerido) seria melhor e mais eficiente. Mas há mais pecados...
Luís Campos e Cunha, professor universitário
in «Público», 19.03.2010
(*) Luís Campos e Cunha baseia a afirmação numa "projeção-frete" feita pelo governador do Banco de Portugal, numa altura em que o governo já era socialista; omite, igualmente, que até à sua passagem pelas Finanças, o país estava obrigado a um défice de 3%, situação que foi alterada nessa altura - lapsos que não tiram mérito ao artigo