18/05/2010

O défice de liderança política

O PEC foi apoiado no Parlamento pelo PSD de Manuela Ferreira Leite, que não negociou com o Governo. Foi uma decisão pessoal (e pouco consensual no seu partido) da líder cessante.

Nessa altura, não havia no PSD interlocutor capaz de se comprometer para os próximos anos, o que deu ao Governo desculpa para nada negociar. Passos Coelho, candidato à liderança do PSD, dizia-se desobrigado de compromissos com o Governo, sobretudo quanto ao PEC e a impostos.

O CDS e o Bloco de Esquerda tinham entretanto avançado com propostas de alteração ao PEC. O Governo nem as discutiu. E não permitiu adiar o voto parlamentar de apoio ao PEC (adiamento que permitiria ter já em funções o novo líder do PSD). Estranho, quando era necessário um consenso multipartidário credível.

Com Passos Coelho eleito líder, o PSD apresentou propostas para o PEC. Longe de representarem uma alternativa, tais propostas seriam, quando muito, complementos ao PEC do Governo. Mas nada justificava a agressividade com que as recebeu o ministro Vieira da Silva, classificando-as de "encenação" e de "uma mão-cheia de nada". Não havia no Governo vontade de negociar o PEC.

Entretanto, a situação nos mercados agravou-se perigosamente, com a dívida portuguesa a pagar juros cada vez mais altos. O Governo reagiu bramando contra o "ataque especulativo". Dá jeito porque atira as culpas da situação para outros, mas nada resolve.

Perante o deslize para o abismo, Passos Coelho pediu um encontro com Sócrates. A conversa suscitou esperanças de uma base política alargada ao aperto do cinto. Mas logo veio o banho de água fria: o Governo reiterou que iria avançar com as grandes obras públicas.

Com calma e um sentido de Estado que anteriores posições suas não faziam prever, Passos Coelho lamentou a atitude do Governo mas não partiu a loiça. Pouco tempo passou - com o acesso do país ao crédito externo cada vez mais caro e difícil - para o primeiro-ministro, em estado de aflição, ser forçado a recuar pelos nossos parceiros na zona euro. Adiou alguns grandes projetos e comprometeu-se com mais medidas de redução do défice. Para este novo PEC Sócrates solicitou o apoio do PSD.

O PSD acedeu, colocando condições razoáveis, que o Governo em geral aceitou. Ainda bem. Os mercados não confiam em reduções drásticas do défice sem apoio parlamentar maioritário. Pena é que se tenha perdido tanto tempo - e tanto dinheiro.

O comportamento errático do primeiro-ministro, reagindo com atraso e a reboque dos acontecimentos, em vez de os antecipar, tem desde há muito um efeito nefasto na opinião pública. Não lhe transmitindo uma ideia realista da gravidade da situação, não a prepara para os inevitáveis sacrifícios. Falta explicar às pessoas os problemas do país, com verdade e sem cenários cor-de-rosa, ou seja, as autênticas razões da austeridade.

Os mercados também reparam no optimismo de Sócrates. Eles vêm os gregos reagirem violentamente contra a austeridade, em parte porque o seu anterior governo não apenas manipulou as estatísticas enviadas a Bruxelas como enganou o próprio povo, fazendo-o crer que podia viver como se fosse rico, ao mesmo tempo que as exportações gregas perdiam competitividade, estando já excluída a desvalorização da moeda. Tal como cá.

O Governo escondeu a crise estrutural portuguesa, em particular o défice externo (assunto para ele tabu), com a crise internacional, culpa dos outros. Depois, atribuiu as responsabilidades pelo actual aperto aos especuladores, como se não se soubesse que Portugal gasta mais de 10% acima do que produz, pedindo emprestado para cobrir a diferença. Assim, em todo o mundo houve quem apostasse em que não pagaríamos a crescente dívida externa; outros investidores simplesmente tiveram medo e livraram-se dela. Por isso encareceu tanto o crédito a Portugal.

Em 1983, pela segunda vez em cinco anos, o FMI impôs a Portugal grandes sacrifícios como condição para os estrangeiros nos emprestarem dinheiro. Mas o programa de austeridade resultou. Em grande parte por mérito do então primeiro-ministro Mário Soares, que não só deu total apoio ao seu ministro das Finanças, Ernâni Lopes, como falou claro aos portugueses, tornando-os conscientes da situação e das suas exigências. É uma liderança política como essa que agora falta.

Francisco Sarsfield Cabral, Jornalista
in «Público», 17.05.2010