14/05/2010

Corrigir o passado

A armadilha do que devíamos ter sido

Essa ideia de que o passado tem de ser revisto e editado à luz do presente gera equívocos e constrangimentos que, quase invariavelmente, recaem sobre aqueles que poucas ou nenhumas responsabilidades tiveram nesse passado.

Só assim se explicam as polémicas que envolvem Manuel Alegre e a implantação de uma estátua dedicada aos soldados mortos no Ultramar, em Santa Comba Dão.

Assim, num país onde elementos das Forças Armadas entregaram informações e armamento a movimentos como o MPLA, a Frelimo ou o PAIGC, e fizeram-no enquanto decorriam as negociações com vista às independências precisamente para que as independências terminassem com esses movimentos no poder; quando nunca foram segredo os telegramas enviados para Lisboa por estruturas militares do MFA, por exemplo de Moçambique, ameaçando render-se caso Portugal não reconhecesse a "Frelimo como único e legítimo representante do povo de Moçambique" e quando se sabe que essas mesmas Forças Armadas deixaram para trás portugueses que tinham sido raptados por esses movimentos às vezes com a própria conivência de militares portugueses, não deixa de ser um pouco desconcertante que um cidadão português, no caso Manuel Alegre, se veja obrigado a esclarecer que cumpriu o serviço militar.

Na mesma linha de paradoxo vem a notícia sobre a decisão da Câmara de Santa Comba Dão de erigir um monumento aos mortos na guerra do Ultramar (e terão sido dezasseis os jovens daquele concelho que aí perderam a vida) no local onde anteriormente se encontrava uma estátua homenageando Salazar.

A estátua de Salazar foi destruída por uma bomba em 1978 e desde então é recorrente a polémica em torno da sua reedifi cação. Alheios a essa polémica deveriam ser os 16 homens mortos na guerra. Salazar é um assunto. Os mortos na guerra - e note-se que Portugal teve também conflitos militares em África antes de 1961, nomeadamente durante a I República - tal como a própria guerra são outro.

Enquanto continuarmos a entender o passado não como a nossa História comum mas sim como algo em que devíamos ter sido o que agora somos então vamos continuar a andar às voltas embaraçados em estátuas aos mortos na guerra e documentos que atestem o cumprimento do serviço militar nessa mesma guerra.

Helena Matos
in «Público», 13.05.2010