13/11/2010

Selva sem lei ... Isto não fica por aqui!


As autoridades norte-americanas costumavam dar sermões a outros países a respeito dos fracassos econômicos destes e aconselhar que eles imitassem o modelo dos Estados Unidos. A crise financeira asiática do final da década de noventa, em particular, fez com que os norte-americanos dessem muitas lições de moral.

Assim, em 2000, Lawrence Summers, o então secretário do Tesouro dos Estados Unidos, declarou que o segredo para se evitar crises financeiras residia em "bancos bem capitalizados e supervisionados, governança corporativa eficiente e códigos relativos a falências, bem como meios convincentes de fazer com que contratos sejam respeitados". A dedução óbvia é que todas essas eram qualidades das quais os asiáticos careciam - mas que nós tínhamos.

Os escândalos de contabilidade na Enron e na WorldCom acabaram com o mito da governança corporativa eficiente. Atualmente, se alguém falar que os nossos bancos estavam bem capitalizados e supervisionados, todos acharão que trata-se de uma piada de mau gosto. E agora a bagunça das hipotecas está contradizendo as alegações de que nós contamos com um sistema eficaz para garantir o cumprimento de contratos – na verdade, a questão é saber se a nossa economia é governada por algum tipo de regra legal.

A história até o momento é a seguinte: um aquecimento épico do setor imobiliário e um persistentemente elevado índice de desemprego provocaram uma onda de calotes epidêmica, quando milhões de proprietários de residências passaram a atrasar as prestações das suas hipotecas. Assim sendo, as companhias que coletam pagamentos para os donos de hipotecas passaram a cancelar muitos contratos, confiscando diversas propriedades residenciais.

Mas será que elas têm de fato o direito de sequestrar essas casas? Histórias de horror têm se proliferado, como o caso daquele homem da Flórida cuja casa foi confiscada ainda que ele não tivesse nenhuma hipoteca. E o mais significativo é que certas pessoas estão ignorando a lei.

Os tribunais têm aprovado sequestros de imóveis sem exigir que os cobradores apresentem documentação apropriada; em vez disso, eles têm se baseado em declarações que garantem que os papéis estão em ordem. E essas garantias são com frequências prestadas por "assinantes-robôs", ou funcionários de pouca importância hierárquica que não sabem se as declarações apresentadas são de fato verdadeiras.

Agora uma verdade terrível está ficando evidente: em muitos casos, não existe documentação nenhuma. No frenesi da bolha, muitos empréstimos para compra de imóveis foram feitos por companhias inescrupulosas que procuram gerar o maior volume possível de negócios. Essas empresas tinham a obrigação legal de obter e guardar as notas de hipoteca que especificassem as obrigações dos mutuários. Mas agora está claro que tais detalhes foram frequentemente negligenciados. E isso significa que muitos sequestros de residências que estão ocorrendo no momento são, na verdade, ilegais.

Isso é péssimo. Até porque é quase certo que um número significativo de mutuários está sendo fraudado – tendo que pagar taxas que eles na verdade não devem, e sendo declarados insolventes quando, segundo os termos dos seus contratos de empréstimo, não é essa a situação real.

Além disso, se essas empresas são incapazes de apresentar provas de que de fato são donas das hipotecas, os patrocinadores de tais companhias enfrentarão processos judiciais movidos pelos investidores que compraram os títulos de resgate da dívida – títulos que, atualmente, muitas vezes valem apenas uma pequena fração do seu valor real.

E quem são esses patrocinadores? Grandes instituições financeiras – as mesmas instituições que foram supostamente salvas da falência por programas governamentais no ano passado. Assim, a bagunça das hipotecas ameaça provocar uma outra crise financeira.

O que pode ser feito?
A resposta do governo Obama tem sido opor-se a qualquer ação que possa irritar os bancos, como uma moratória temporária dos sequestros de imóveis residenciais enquanto algumas questão são resolvidas. Em vez disso, o governo está pedindo aos bancos, de forma muita educada, que se comportem melhor. Isso funcionou muito bem no passado, não é verdade?

A resposta da direita é, no entanto, ainda pior. Os republicanos no congresso não estão se manifestando muito, mas os comentaristas conservadores como os da página de editorial do "Wall Street Journal" têm afirmado que a falta de documentos é um detalhe sem importância. De fato, eles afirmam que se um banco diz que é dono da casa de um determinado indivíduo, nós devemos acreditar automaticamente na palavra da instituição financeira.

Para mim, isso faz lembrar a época em que os membros da nobreza tinham liberdade para se apossarem do que quisessem, sabendo que os camponeses não tinham voz nos tribunais. Mas é aí que eu suspeito que algumas pessoas veem aquela época como "os bons e velhos dias".

O que deveria estar acontecendo? Os excessos dos anos da bolha criaram um lamaçal moral, no qual os direitos de propriedade são mal definidos porque ninguém possui documentação apropriada. E no qual não existe nenhum direito claro de propriedade; o trabalho de criar tais direitos cabe ao governo.

Isso não será fácil, mas há algumas boas ideias circulando em relação ao problema. Por exemplo, o Centro para o Progresso Americano propôs que seja delegado a conselheiros de hipotecas e outras entidades públicas o poder de modificar diretamente os empréstimos problemáticos, de forma que as suas avaliações sejam o padrão a se seguir a menos que sejam contestadas pelos cobradores de hipotecas. Isso contribuiria bastante para deixar as coisas mais claras e ajudar a nos tirar desse lamaçal.

Uma coisa é certa: o que estamos fazendo agora não está funcionando. E fingir que tudo está bem não convencerá ninguém.
Paul Krugman

Paul Krugman

Professor de Princeton e colunista do New York Times desde 1999, Krugman venceu o prêmio Nobel de economia em 2008