25/11/2010

Contra a violência sobre as mulheres

“Ora, menina, bate no que é dele!” Foi há uns trinta anos que pela primeira vez ouvi isto. Domingo, manhã cedo, no adro da igreja da aldeia das minhas férias. Não era incomum surgir uma mulher com a cara inchada, o olho raiado de sangue, o lábio rebentado. Causa de espanto só mesmo o meu espanto, diante de tal visão e da resignação da própria e das demais — “ai, o meu homem ontem bateu-me tanto”, “o meu também fica ruim quando bebe”. O meu “então e deixa que ele lhe faça isso?” fê-las rir, nervosas: “e o que há-de ela fazer?” Seguiu-se o remate, lapidar: “bate no que é dele”. Variante do deplorável “quanto mais me bates, mais gostas de mim”. Era outro tempo, outro contexto, feito de atraso, miséria e alcoolismo. Ou será que não?

Cenas que se desenrolam diante de mim, relatos que me chegam. O namorado que batia vinga-se da ruptura fazendo montagens escabrosas com a imagem dela, que envia a conhecidos e colegas e espalha na net. O marido que vive com a amante mas submete a mulher ao silêncio e à humilhação de o ter na sua cama quando ele queira, ameaçando tirar-lhe os filhos, que ela não consegue sustentar, por ter trocado a promissora carreira por um emprego mal pago e tempo para a família. O sujeito que, diante de qualquer mulher que se destaque, regista que “curiosamente, ela é inteligente”. O mesmo e tantos outros que, em privado e em público, mandam calar a mulher, por ser “burra” e/ou não saber o que diz, a repreendem, ora com o “és mesmo incapaz de fazer o que quer que seja em condições”, ora com o “não prestas para nada” e rematam diferendos com um “enquanto for eu a pagar, sou eu quem manda aqui”. Casos raros de péssima e retrógrada educação, dinossauros condenados à extinção neste mundo de igualdade e paridade. Ou será que não?

A minha filha teria dez anos. Um pretendente declarou-se. Rejeitado, insistiu. Sem êxito. Mudou de estratégia: nos recreios plantava-se com os amigos junto dela e chamavam-lhe “p—“. Repetidamente e aos gritos. Quando soube, passei-me. Ainda ponderei recorrer à via institucional, mas a mãe-leoa levou a melhor. Rugi: “da próxima vez, bem alto, para toda a gente ouvir, «p— é a tua mãezinha»… à minha responsabilidade!” Logo no dia seguinte, o moço deu o primeiro tiro e levou com a rajada, bem à vista da sua entourage e de quantos mais ali estavam. Ficou histérico: gritou, esbracejou, soluçou descontrolado. Foi preciso chamar a psicóloga. Soube depois, por várias mães, que as filhas haviam passado pelo mesmo, com estes e outros meninos. E que “lésbica” era também de uso corrente, para o mesmo efeito. Miúdos malcriados, idades parvas, excessiva sensibilidade e ferocidade da minha parte. Ou será que não?

São casos muito diferentes entre si, na sua gravidade, dir-se-á. Pois são. Estão todos a anos-luz das atrocidades a que são submetidas meninas e mulheres noutras latitudes, noutros ambientes culturais e religiosos, acrescentar-se-á. Pois estão. Não se trata, é certo, de violações em cenário de guerra, de casamentos forçados de meninas ainda crianças, de mutilação genital, de crimes de honra ou motivados pelo incumprimento do dote ajustado, de aborto selectivo ou de infanticídio de recém-nascidos do sexo feminino: a lista de barbaridades é bem conhecida e ressurge todos os anos por esta altura, perturbadora e ilustrada por números que nos gelam.

Mas importa não esquecer que à cabeça deste rol de infâmias, pela sua frequência, vem a violência inflingida à mulher pelo que é ou foi seu companheiro, seja através de espancamento, de coerção sexual ou de formas variadas de abuso psicológico e emocional.

Segundo números da ONU, do total de mulheres que por todo o mundo tombam vítimas de homicídio, cerca de metade morre às mãos dos seus intimate partners. Em Portugal, em 2010, a violência doméstica causou já 39 mortes e 37 tentativas de homicídio (respetivamente mais 10 e mais 9 que em 2009).

E convém ter presente que esta e as demais formas de violência referidas radicam numa visão profundamente discriminatória da mulher, no casal e na família, marcada pela sua subordinação à autoridade do homem, na sua instrumentalização à satisfação de interesses tidos como preponderantes e na desvalorização das suas capacidades pessoais e necessidades de desenvolvimento e de realização individual.

A violência sobre as mulheres, não há como negá-lo, faz parte da nossa realidade. Atravessa todos os estratos sociais, económicos, geracionais ou etários. E tende a subsistir e a replicar-se, fruto de uma pesada herança cultural, feita de atitudes, de estereótipos e de papéis, aprendidos e, não raro, banalizados como suposta expressão característica e inevitável do nosso modo de ser e de viver.

Pior, a ânsia de poder e de controlo que subjaz a esta violência convive muitíssimo mal com o sucesso profissional, a independência financeira e a autonomia emocional conquistadas pelas mulheres. Com a crescente consciência de que quem ama, não deprecia nem sufoca, de que o casamento se vive, não se aguenta. Estudos recentes apontam para um assustador aumento desta violência, potenciado pela insubmissão daquelas perante atitudes masculinas hoje vistas como inaceitáveis.

Tudo isto me incomoda e me dá que pensar, enquanto mulher que vive neste mundo e mãe de três filhas que, temo bem, terão ainda de travar duros combates nesta frente. Porque esta violência cruel e injusta é um problema de ontem, de hoje e também de amanhã. E é a clara noção disso que nos exige que preparemos os nossos filhos para o enfrentar e, quem sabe, debelar em definitivo. Explicando aos meninos que ser homem não é ser bruto, que as mulheres se conquistam e se mantêm, não se compram, nem subjugam. Ensinando as meninas a prezar e a, em caso algum, abrir mão da sua individualidade, autonomia e dignidade. Com a palavra e com o exemplo. É essa a nossa responsabilidade.

* Texto escrito em resposta ao desafio que me foi lançado pela Luciana, do Borboletas nos Olhos, para me associar, com ela e muitos outros, à iniciativa “ativismo online – FimDaViolenciaContraMulher”, a propósito do Dia Internacional para a Erradicação da Violência Contra a Mulher, que hoje se comemora em todo o mundo (e originalmente publicado aqui).