23/11/2010

O racismo de esquerda

I. A Alemanha, através de Merkel, foi clara: a sociedade multiculturalista falhou. E, aqui, convém fazer uma clarificação dos conceitos. O multiculturalismo não é o mesmo que cosmopolitismo. Uma sociedade cosmopolita é uma sociedade composta por indivíduos de diferentes origens e religiões. Ou seja, uma sociedade cosmopolita é uma sociedade multicultural (no sentido em que não é composta apenas por um grupo étnico e/ou religioso), mas é uma sociedade assente no indivíduo, e não em "culturas" ou "comunidades". Por outras palavras, uma sociedade com muitas culturas lá dentro (um fenómeno orgânico e típico de uma sociedade aberta) não é o mesmo que o Multiculturalismo (uma ideologia que produziu políticas públicas concretas).

II. O multiculturalismo é uma doutrina política (fortíssima na esquerda de países como o Reino Unido ou Holanda) que determina que cada "comunidade" deve ter as suas regras e as suas leis . Isto, na prática, significa o seguinte: os muçulmanos vivem dentro da Alemanha e do Reino Unido, mas não têm de seguir as regras que os alemães e os britânicos seguem. É esta doutrina que está na base do "politicamente correcto", essa espécie de racismo cor-de-rosa que infantiliza e desresponsabiliza todos os não-brancos.

III. A esquerda europeia agarrou esta doutrina multiculturalista a partir dos anos 70. Após o fracasso da grande utopia marxista, esta esquerda pós-marxista tornou-se profundamente reaccionária e começou a pensar nos termos da velha direita: o seu centro passou a ser a "tradição cultural"; passou a defender a "tradição cultural" contra o iluminismo cosmopolita (e imperialista, dizem) do Ocidente. Desta inversão ideológica, surgem casos absurdos como este relatado por Amartya Sen: no Reino Unido, uma miúda muçulmana quer namorar com um rapaz inglês, mas os pais da miúda proíbem essa relação. Perante isto, o que dizem os ideólogos do multiculturalismo? É muito simples: apoiam os pais da miúda. Temos assim a esquerda europeia a apoiar os movimentos mais reaccionários, misóginos e homofóbicos do mundo.

IV. Vai haver muita gente a apelidar Merkel de "racista". Mas o "racista" desta história é o pensamento politicamente correcto, que infantiliza constantemente o "outro", ilibando-o de cumprir as regras de uma sociedade livre. Neste debate, convém sempre relembrar as bases do direito cosmopolita: um estrangeiro tem os mesmos direitos e os mesmos deveres de um nacional. Durante décadas, a atmosfera politicamente correcta deu direitos ao muçulmano e, depois, disse-lhe que ele não tinha de cumprir os deveres e as regras. Essa bolha do racismo cor-de-rosa explodiu. Merkel disse o óbvio: "quem quiser fazer parte da nossa sociedade tem de obedecer às nossas leis e falar a nossa língua". Meus amigos, não é possível ter comunidades inteiras que não falam a língua oficial do país onde vivem. Repare-se nisto: "há muita gente a pôr os filhos na escola privada, o que não fariam há alguns anos, porque nalguns sítios, na escola pública, 80% dos alunos não fala alemão" (relato de um cidadão alemão, Público, 24 de Setembro).

V. Merkel está a seguir um critério kantiano, e não "nacionalista". Merkel não está a dizer que x e y têm de rezar ao deus alemão, não está a dizer que têm de cantar o hino alemão, não está a dizer que não podem ter a sua religião. Está a dizer que existe um chão comum, composto por leis e regras, que tem de ser respeitado, seja qual for a religião de x ou y. O desrespeito por esse chão comum tem um nome: barbárie. E o politicamente correcto alimentou, durante décadas, essa barbárie. Mas, felizmente, esta barbárie cor-de-rosa está a acabar.

Henrique Raposo
in «Expresso», 20.10.2010