30/04/2010

Titanic

Titanic era o navio inafundável, segundo as autoridades. Tal como Portugal. Mas, na sua primeira viagem, encontrou uns pequenos problemas e afundou-se, por incúria do comandante. Tal como Portugal. O que vimos esta semana foi uma baixa drástica no rating da República Portuguesa e com a ameaça de continuar (o chamado negative outlook). O que significa que ou nos apressamos ou o rating volta a cair. Tudo, genericamente, previsível e pré-anunciado.

Desde a crise de 2008-2009 que os mercados andam nervosos e com grande aversão ao risco. O que implica que a qualquer má notícia sobre uma empresa, ou um país, os mercados reajam fortemente. Tudo sabido e sem novidade para quem os conhece. No entanto, se os mercados andam nervosos em relação ao risco, o Governo deve mostrar, com acções decididas e palavras fortes, e claras, que Portugal não é um país de risco.

Diz-se que os mercados estão a atacar o euro, a especular contra Portugal e que há efeitos de contágio da Grécia sobre Portugal. Esta visão tem muitos erros técnicos e seria um aborrecimento para todos tentar explicar. Vamos, assim, assumir que é verdade e que a especulação campeia. Isto significa apenas que temos de ser ainda mais cuidadosos. Qual a reação do Governo? Nenhuma.

Se nos mercados há especuladores, então devemos evitar que Portugal seja o foco dessa especulação. Se essa especulação for infundada, os especuladores contra o País perdem dinheiro e saem do mercado. Como se faz isso? O Governo deve antecipar-se aos acontecimentos - e não dar o flanco - com ações decididas e com um discurso forte e claro. Se há contágio nos mercados (e tal existe) devemos estar longe do foco de contágio. Ou seja, mostrar com palavras fortes e ações decididas e claras que Portugal não só não é a Grécia mas, mais importante, que não vai seguir esse mesmo caminho. E, para isso, o Governo deveria ter palavras fortes e ações decididas e claras que mostrassem que Portugal não é, nem será, a Grécia. O problema grego começou em Novembro e desde o início do ano que todos (mas todos) os indicadores mostravam que os mercados estavam crescentemente nervosos em relação a Portugal. O que fazer? O primeiro-ministro deveria ter tido palavras fortes e claras de compromisso político (e acções consistentes com as palavras) com a disciplina orçamental.

Com a apresentação do PEC - Programa de Estabilidade e Crescimento -, à primeira vista (aliás, antes de terem tido tempo de o ver) já personalidades e instituições internacionais, como o presidente da Comissão, o presidente do Eurogroup e o FMI, davam nota positiva ao nosso Programa. Não queriam outra Grécia, era óbvio. Mas, pelo menos desde meados de Março, voltaram a perceber que tal PEC poderia não chegar e que, afinal, não era assim grande coisa, embora pudesse ser melhor que o espanhol. O rigor orçamental era um objetivo demasiado longínquo e as medidas, como a Comissão veio, mais tarde, a sublinhar em palavras particularmente fortes, poderiam não chegar.

O que deveria o Governo ter feito: ter ações decididas e claras e um discurso forte para mostrar a sua determinação de tomar mais medidas, se necessário fosse, e de fazer de Portugal um país onde se pode investir. E, em particular, que era vantajoso comprar a nossa dívida pública.

Face aos sinais evidentes dos mercados, face às dúvidas que se avolumavam, como reagiu o Governo? Fazendo de conta que não era nada com ele e nunca se ouviu o primeiro-ministro a reafirmar de forma convincente o compromisso político com a estabilidade financeira do Estado.

Quanto aos actos, foi ainda pior, porque prosseguiu com as grandes obras públicas de megalómano, aprovando o contrato para o TGV-Madrid, anunciando mais duas centrais fotovoltaicas. E hoje, quinta-feira, já depois dos problemas agravados, assinando o contrato da terceira auto-estrada Lisboa-Porto. Tanto erro de política orçamental ultrapassa a incompetência óbvia e legitima outras suspeitas.

O discurso não existe e os actos são contrários à disciplina orçamental. Os mercados, depois de avisarem, cumpriram. E voltarão a cumprir, porque já avisaram.

Poderia ser, nunca o saberemos, que essa posição do Governo não acalmasse os mercados. Mas, pelo menos, tentava-se. Em Fevereiro, com a esperança do PEC que aí vinha, resultou, pois os mercados estavam dispostos a esperar. O que não vale a pena, porque ridículo, é culpar os especuladores ou uma conspiração americana contra o euro. Em português chama-se a isto atirar poeira para os olhos; na imprensa anglo-saxónica, se se desse ao trabalho de reproduzir tais afirmações, diriam que era bull-shitting e, na francesa, seria parler pour rien dire. Na verdade, a cama onde nos deitamos foi feita por nós.

E agora? Neste momento, o leite está derramado e é difícil voltar a metê-lo no copo. Esperava-se que retirassem a lição e, no entanto, as notícias de hoje não auguram nada de bom. Portugal ainda tem possibilidade de sair desta crise de endividamento, sem recorrer a auxílios internacionais humilhantes, como tem sido o caso dos gregos. Mas temos de fazer por isso: o controlo das contas públicas não aparece espontaneamente. O estado de negação em que tem vivido o Governo vai sair muito caro a cada um dos portugueses, com juros mais altos, menor crescimento e certamente mais desemprego. Mas mais vale tarde do que nunca: temos de ouvir um compromisso político forte sobre finanças públicas, acompanhado de acções claras e decididas sobre o assunto.

Quando o Titanic se afundou, por incúria e soberba do comandante, a orquestra continuou a tocar. Foi um gesto tão heróico quanto inútil e, por isso, ainda o recordamos. Desta vez, também a banda continua a tocar, enquanto o País se afunda, como se nada se passasse. Desta vez não é heróico, é ridículo e trágico.

Luís Campos e Cunha, Professor universitário
in «Público», 30.04.2010