03/08/2010

Socialismo: "Me liga Oi"

Parece ter finalmente chegado ao fim o episódio do controlo da Vivo pela Telefónica.

De acordo com a maior parte dos analistas, a história terá tido um final feliz: a interferência do Governo traduziu-se num encaixe adicional de 315 milhões de euros por parte dos accionistas, e a PT mantém-se no Brasil, tal como o Governo pretendia. No campo político, a interferência terá certamente gerado dividendos: afinal, o Governo atuou como catalisador do orgulho nacional, numa contenda que evoca temas tão profundos como Aljubarrota, o futebol, Pedro Álvares Cabral e a Lusofonia. Além disso, a manutenção da PT em rédea curta é consistente com uma forte influência do Estado na esfera dos negócios, o que pode revelar-se útil em circunstâncias várias.

Depois de tudo o que li, no entanto, confesso que não me sinto minimamente esclarecido numa questão essencial: afinal, onde estava o interesse nacional que motivou a intervenção do Governo em primeiro instância?

É um facto que na altura em que a PT foi privatizada, os estatutos da empresa eram conhecidos. Em particular, sabia-se que existiam ações especiais, que apenas poderiam ser detidas pelo setor público e que conferiam aos seus detentores poder de veto em matérias diversas, designadamente no que respeita à nomeação de dirigentes e à política de participações da empresa. Por conseguinte, os eventuais prejuízos decorrentes de interferências administrativas nas decisões da empresa deveriam estar já devidamente descontados nos preços das ações, sob a forma de um prémio de risco acrescido.

Mas a materialização da prerrogativa num caso como este não era à partida evidente: é que, ao forçar a presença da PT no Brasil e, mais do que isso, ao inviabilizar uma transacção entre duas empresas pertencentes a dois Estados-membros da União Europeia, o Governo não só negou aos acionistas a possibilidade de influenciar as decisões da sociedade na proporção das suas ações, como além disso atropelou o princípio fundamental da livre circulação de capitais, pondo em causa o compromisso do País com o funcionamento do Mercado Único. Não sendo tal matéria de somenos, impunha-se que a este processo estivesse associada uma razão imperiosa de interesse nacional. Ora, não é nada óbvio que a presença da PT no Brasil preencha o requisito.

Diz o Governo que a presença da PT no Brasil é essencial, pois só assim a empresa terá escala suficiente para inovar e, por essa via, contribuir para o desenvolvimento do País. Mas a justificação é frágil. Por essa ordem de ideias, concluiríamos que o País estaria melhor servido se o Estado possuísse também acções de oiro no BPI, na Sonae ou na Jerónimo Martins, e se as usasse para impedir a venda dos respectivos ativos no estrangeiro, por muito atrativas que os acionistas considerassem as ofertas. Como é evidente, forçar uma empresa a investir num país estrangeiro contra a vontade dos seus acionistas não tem nada a ver com o interesse nacional. Ao País, o que interessa é que os investidores façam escolhas acertadas e obtenham boas rendibilidades nos seus negócios e nessa matéria cada investidor será o melhor juiz dos seus próprios interesses.

Como é evidente, nem sempre os interesses privados alinham com o interesse coletivo. E nomeadamente no caso da PT, há áreas onde se justifica a intervenção do Estado. Mas será a detenção de acções de oiro a modalidade mais eficaz para lidar com o problema? Claramente não.

Uma matéria onde os interesses do País podem colidir com os interesses dos acionistas da PT é a necessidade de garantir a universalidade do serviço de telecomunicações. Na medida em que a prossecução de tal objectivo implique a presença da empresa em segmentos de rentabilidade negativa, o mesmo não seria assegurado numa lógica meramente privada. No entanto, essa situação está já devidamente acautelada no contrato de concessão entre o Estado e a PT. De facto, ao abrigo desse contrato, a PT obriga-se a prestar alguns serviços considerados de utilidade pública, mesmo que não sejam rentáveis. E precisamente, para que os accionistas não sejam prejudicados, estabelece-se o direito da empresa a indemnizações compensatórias, que o Estado português é chamado a pagar todos os anos. Isto é: a PT presta um serviço público e o contribuinte paga. Este mecanismo é eficaz e suficiente para garantir a prestação do serviço público, não resultando em excesso de intervenção (*). Já a detenção de acções de oiro, além de redundante, viola o princípio da proporcionalidade: nomear gestores e restringir a política de participações da empresa para garantir a universalidade do serviço de telecomunicações é utilizar um canhão para matar uma mosca.

Uma segunda matéria onde, no caso da PT, se justifica a intervenção é a necessidade de assegurar a disponibilidade da rede de telecomunicações numa situação de guerra, catástrofe natural ou terrorismo. No entanto, também neste caso o recurso às ações de oiro é redundante. De facto, o contrato de concessão entre o Estado e a PT já prevê a possibilidade de o Estado assumir o comando da empresa, em caso de guerra ou crise grave. Essa cláusula chega e sobra para acautelar o interesse geral em tempo de guerra. A extensão desses poderes aos tempos de paz é claramente excessiva e viola mais uma vez o princípio da proporcionalidade.

(*) É importante notar que o direito comunitário não vê as indemnizações compensatórias como impedimentos à concorrência, precisamente por se tratarem de compensações por serviços de interesse geral que o livre funcionamento do mercado não permitiria assegurar. Mas ninguém duvida que a Comissão não aceitaria como indemnização compensatória qualquer contrapartida que o Estado Português entendesse atribuir à PT pelo facto de esta ter feito um investimento desastroso na Oi. O mais natural seria considerar tal apoio como um Auxilio de Estado incompatível com as regras da concorrência. Esta alusão mostra por absurdo quão questionável é a tese de que a presença da PT no Brasil constitua matéria de interesse geral.

Miguel Lebre de Freitas, docente Universitário
in «Jornal de Negócios», 03.08.2010