A menção pela Casa Branca de que o proprietário do Maputo Shopping Center, Momed Bachir Suleman (MBS), está envolvido no narcotráfico, simboliza a queda de uma máscara que o Estado moçambicano andou a suportar há mais de duas décadas. MBS é um comerciante do norte de Moçambique que, em meados dos anos 90, no auge da liberalização da economia, começou a prosperar vendendo electrodomésticos de ponta num mercado sempre sedento de artefactos eletrónicos a preços de pechincha. Bachir tinha um passado modesto, diz-se, de vendedores de capulanas em pequenas cantinas.
Em meados de 90, Moçambique era um país completamente mergulhado nas malhas do crime organizado. Abertas as fronteiras e reduzido o poder repressivo e vigilante do Estado, irrompeu uma tentação por dinheiro fácil e o país passou a ser usado como rota de tráfico de droga. Em 1995, quarenta toneladas de haxixe foram encontradas em plena cidade de Maputo mas nunca houve condenados. De lá para cá, foram vários os casos de drogas denunciados, ligações expostas, comerciantes que prosperaram nessa maré, mas nunca foram responsabilizados.
Numa democracia emergente e um Estado paupérrimo, altos oficiais públicos optaram por viver das luvas da impunidade que ofereciam à grande corrupção e ao crime organizado. Em 2001, num artigo em conjunto com Peter Gastrow, descrevemos as principais formas de lavagem de dinheiro, corrupção e crime organizado em Moçambique, identificando a excessiva penetração que as redes criminosas tinham no Estado, nomeadamente na Polícia, nas Alfândegas e na Justiça. Na altura, até dissemos que Moçambique era um Estado criminalizado, devido a essa penetração criminosa nas suas estruturas dirigentes. E acrescentamos que estava a beira do chamado state capture. A mim, chamaram-me de anti-patriota e ao serviço de mão externa. Mas o assassinato de Siba Siba Macuácua pôs freio ao rol de acusações, pois, estava ali, trágica, revoltante, uma evidência sem disfarce de uma realidade que apenas ficou menos pungente porque o assassinato do editor Carlos Cardoso teve julgamento e condenações. Por pressão da comunidade internacional.
Os barões moçambicanos sempre cultivaram uma forte consciência de que, para triunfarem, tinham que aliar-se ao Partido no poder, que controla todo o aparato estatal. Desde os tempos de Joaquim Chissano que era normal ver comerciantes ligados a actividades sujas oferecerem enormes quantias de dinheiro ao Partido Frelimo em tempo de eleições, numa prática de financiamento político desarmado de regras, que era o mesmo que comprarem a sua impunidade ou a vista grossa do Estado em matéria fiscal e aduaneira. Lembram-se das jantaradas em que o antigo presidente recebia directamente dinheiros da chamada comunidade empresarial de Maputo? Existem fotos documentando Nini Satar em ofertórios generosos à nata do partidão.
MBS cultivou ferozmente esse desiderato. De pequeno cantineiro de venda de capulanas em Nampula, tornou-se em pouco tempo um importante agente económico em Moçambique, um grande contribuinte, como sói dizer-se. A sua Kayum Center, na Karl Marx, era, antes do Maputo Shopping Center, o principal mercado de electrodomésticos de Moçambique, ao mesmo tempo que mantinha algumas lojinhas de capulanas nos subúrbios para cumprir a tradição.
Nos corredores de Maputo, o crescimento pujante do seu negócio era algo que assustava e deixava incrédula toda a gente. Amigos na Polícia e nas Alfândegas sussurravam explicações óbvias, mas nunca ninguém ousou levá-las às últimas consequências: MBS triunfava não com negócios limpos, mas porque estava ligado à droga. Por isso, todo o moçambicano que ouviu hoje a bombástica notícia, respira um alívio cúmplice: já sabíamos!!! Todos sabíamos, mas quem ousaria meter a mão num homem que alimentava o partidão?
Aliás, esta relação de MBS com o Partido é reveladora da promiscuidade entre política e negócios em Moçambique. E MBS soube usar desse trunfo, da noção de que o Partido era o centro do poder e que para manter esse poder precisaria de dinheiro para aguentar campanhas eleitorais desgastantes e tão caras dada a dimensão do país. Por isso, quando Armando Guebuza emergiu como sucessor de Chissano, quase a contragosto deste, MBS alimentou o novo candidato, comprando os seus cachimbos a preços astronómicos, oferecendo canetas de luxo mas comprando-as logo a seguir, voltando a oferecer os mesmos cachimbos (que Guebuza aparentemente já não usa), financiando o Congresso do Partido em Quelimane, tornando esta força política numa das suas lavandarias instrumentais para o funcionamento das redes agora desmascaradas.
Em 2004, na primeira corrida de Guebuza foi assim. Em 2009, também. Embora as chamadas alas honestas do partido soubessem das cavalgadas sujas de Bachir, nunca ninguém teve a coragem de sugerir que isso era perigoso para o país, para a economia, para a sociedade, para o nosso futuro colectivo. Houve sempre um silêncio cúmplice de todos, porque chefe é chefe.
MBS continuou a “progredir” por essa via. Com o partidão na mão, podia fazer sem que ninguém ousasse enfrentá-lo. Nos corredores das Alfândegas, ainda nos tempos em que a corporação aduaneira passava por uma reforma operacional e remoralizadora, os camiões de Bachir, cheios de importações, tinham luz verde para não serem revistados. Mais tarde, quando as Alfândegas regressaram para mãos moçambicanas, e, numa operação obscura em a introdução de scanners de inspeção não intrusiva foi confiada à Kudumba, uma firma de que a SPI (a holding do Partido) é sócia, MBS conseguiu que a sua mercadoria não passasse nesses instrumentos desenhados para impor maior controlo e ordem no comércio internacional, mas que no caso de Bachir nunca foram usados.
A impunidade e a evasão aduaneira já haviam sido compradas há tempo mas, ao longo dos anos, uma série de moçambicanos, figuras com cargos de chefia em departamentos do Estado (Alfândegas, Polícia, Finanças) aproveitaram-se da generosidade narcótica de MBS para construírem impérios de dinheiro, evidenciando enriquecimento ilícito e corrupção desenfreada, à qual o Estado não consegue controlar, mesmo depois de uma Lei (6/2004) e uma Estratégia Anti-Corrupção (2006) terem sido aprovadas sob o slogan da tolerância zero.
A menção pela Casa Branca do nome de MBS como sendo um dos mais influentes barões de tráfico de droga na África Austral é um golpe tremendo que Moçambique recebe por causa da sua relutância em lutar contra a corrupção e o crime organizado de cabeça erguida. Essa relutância não é inocente. Ela resulta da venda de impunidade que alimentou campanhas eleitorais e outras bizarrias de personalidade e imitações de grandeza. O mesmo lugar onde Barak Obama proíbe agora os cidadãos americanos de consumirem, é onde o Partido Frelimo abriu uma loja a custo zero – contra as centenas de USD/mês que custa o aluguer de um m2 para a prática comercial comum – para fazer merchandising dos seus símbolos e camisolas. E é onde, num acesso de provincianismo desmedido, foi instituída uma Guebuza Square, numa imitação insípida à famosa praça de Sandton City.
Esse lugar é o famoso Maputo Shoping Center, que abriu em 2007, depois de um investimento de 32 milhões de USD (segundo tem dito MBS a amigos), alegadamente financiados pela banca. E foi o Presidente Guebuza quem inaugurou o centro. Um dos incentivos dado a esse “grande investimento” foi MBS abastecer a mercearia do centro com produtos importados sem pagarem impostos, numa tremenda concorrência desleal.
Vivendo com salários de miséria, os moçambicanos adoram o Maputo Shopping, pelos baixos preços de mercearia, tal como adoravam o Kayum Center antes deste sofrer um incêndio no ano passado. Do incêndio, a polícia nunca revelou as causas, mas os bombeiros tiveram tremenda dificuldade em debelar o fogo e houve quem dissesse que isso tinha a ver com as “substâncias” que lá estavam. Quando o fogo deflagrou, um das caras públicas que acorreu ao local foi o ministro Manuel Chang, das Finanças, pois era preciso consolar um “grande contribuinte”.
Há meses, antes desta grande relevação da Casa Branca, foi anunciado que MBS conseguiu que o Estado lhe trespassasse o recinto da Marinha de Guerra, que fica mesmo defronte ao Shopping na baixa de Maputo. Não houve hasta nem concurso público, e MBS conseguiu mexendo uns pequenos pauzinhos controlar uma valiosa porção de terra na baixa de Maputo. Tem sido assim em Moçambique. A Lei de Procurement (54/2005) ainda não serviu para impor decência nos negócios do Estado e a gestão do solo urbano é feita sem critérios, servindo apenas para enriquecer figuras bem colocadas num país onde a Constituição estabelece que a terra é do povo.
Agora, o Estado moçambicano deve agir para fazer justiça usando as leis nacionais. As autoridades judiciais moçambicanas devem urgentemente solicitar à Justiça americana as evidências que ela diz ter contra MBS e, a partir daí, tomar todas as medidas devidamente enquadradas no direito nacional e no direito internacional aplicável a Moçambique. É uma questão de honra para todos os cidadãos moçambicanos. E é o mínimo que o Presidente Guebuza pode fazer para proteger a nossa dignidade.
Marcelo Mosse
in «Savana», 02.06.2010