07/06/2010

Há mais vida para além deste orçamento

Jacinto Nunes,  economista, governador do Banco de Portugal, em 1983, diz que a actual crise é mais grave do que as anteriores e mostra-se preocupado com as soluções que estão a ser postas em prática pelas autoridades.

Conheceu de perto a crise de 1983. Como é que a compara com a atual?

Esta crise é diferente da de 1983, que não foi tão grave. O que vivemos em 1983 foi uma crise de pagamento. A atual situação é de gravidade quase idêntica à de 1929, mas de natureza diferente. A de 1929 era de insuficiência da procura e por isso surgiu o keynesianismo como doutrina para compensar a insuficiência de procura. Esta é uma crise de crédito.

Não teme que com as medidas de contenção que se estão a tomar não se esteja a caminhar também para uma crise de procura?

Se temos 600 mil desempregados, com certeza que a procura se ressente.

E não seriam adequadas políticas keynesianas de reforço da procura?

Políticas keynesianas de insuficiência da procura, não. Pelo seguinte: o mundo dos anos 30 não é o mundo de hoje, são diferentes. Não digo que mudou em três semanas. O que digo é que o mundo de há 80 anos não é o mundo de hoje. E há duas diferenças fundamentais: uma é que antes não existia a globalização e, portanto, o livro de Keynes foi dirigido sobretudo para economias desenvolvidas, EUA e Grã-Bretanha, onde a aplicação da despesa tinha os seus efeitos multiplicadores dentro dos próprios países. Agora, se em Portugal seguirmos uma politica keynesiana, vai ser um desastre, pois em equipamento importamos tudo. Hoje até importamos alimentos, desde a alface, ao tomate, à cebola.

Portanto, iríamos ajudar outros países?

Sim. Se o Estado fizer uma politica keynesiana pura de aumento maciço de despesa, isso traduz-se num aumento da dívida externa, porque não existe oferta nacional para satisfazer esse aumento da procura.

Então, se fosse primeiro-ministro, que medidas adoptaria? Não apostaria no investimento público?

A propósito de investimento público, está a fazer-se uma confusão. Eu sou um partidário de investimento público, mas sou completamente contra as grandes obras que não são reprodutivas. E até admito que possa existir uma grande obra que tenha retorno. O TGV para passageiros não acredito, mas penso que quando houver condições é fundamental desenvolver o porto a sul de Sines, para acabar com aquele buraco, e outro a norte, em Leixões ou Aveiro, e fazer uma linha de alta velocidade para a Europa, mas só quando a Espanha fizer a ligação a França. O que é que vamos fazer até Madrid? Ou aquela infantilidade de dizer que os espanhóis vêm cá tomar banho... Só por brincadeira se admite uma afirmação destas. Eu não sou contra o investimento público, e penso até que temos de o fazer. Com mais de 600 mil desempregados e com o acesso ao subsídio de desemprego a ser ainda mais limitado, isto vai refletir-se na insuficiência de procura líquida. Depois quem é que dos privados vai investir num clima destes? Temos que ir buscar alguma compensação ao investimento público, mas ao pequeno investimento público. É claro que aquilo que o primeiro-ministro citou na última entrevista à RTP está certo, ele falou de creches, de escolas, da qualificação urbana. Mas lá acrescentou o TGV, o que é uma tolice... já lhe chamam o TGV do Alentejo.

Uma das diferenças em relação a 1983 é que havia a expectativa de que a economia ia recuperar. Mas hoje não temos essa expectativa. Preocupa-o?

Por isso é que digo que, quando Jorge Sampaio disse que havia vida para além do défice, naquela altura a frase não era apropriada, mas hoje, reinterpretada, é apropriada. Porque vamos chegar a 2013, se estas medidas de contenção de facto chegarem, numa situação económica má. E em 2014, começam as PPP e vamos outra vez apertar o cinto e sem recuperação à vista. E o que é que vai melhorar a situação da economia nacional? O TGV? O aeroporto? Não. Temos que ir fazendo alguns investimentos privados e temos que ir tomando medidas estruturais. Não custa dinheiro fazer a reforma da Justiça, do código penal e do código civil. Como é que vamos atrair o investimento estrangeiro se ele sabe que, se tiver um problema da justiça, demora oito anos a resolvê-lo? Porque não fazemos a reforma da educação? Estas reformas não custam nada, mas não se fazem. Agora só se pensa no défice. Por isso digo que agora faz sentido dizer que há vida para além do défice. E qual é essa vida? Um conjunto de medidas de reformas estruturais da administração pública e outras.

Critica este Governo pela situação em que estamos?

As coisas boas deste Governo foram a reforma da Segurança Social e a politica energética. Mas houve erros que levaram a este défice enorme e um deles foi a redução do IVA. Outro foi dar 2,9 por cento aos funcionários públicos num ano em que a inflação é negativa. Para quê 2,9 por cento? Eu até sou tolerante ao ponto de dizer vamos dar qualquer coisa, um por cento, porque a política tem que ser tida em conta. Não sou um técnico surdo, cego e mudo à realidade política. Mas 2,9 por cento? O terceiro erro, dos mais graves, teve a ver com os certificados de aforro (nota). Foram cortar os juros das pessoas que tinham títulos. Foram centenas de milhões de euros de poupanças que saíram para os bancos. Quem é que os vai adquirir agora?

Em 1983, a desvalorização da moeda ajudou muito...

Sim, agora estamos mais limitados, pois não temos nem politica cambial, nem política monetária, só temos a política orçamental, que agora se pode dizer que passou para Bruxelas. Antes fazíamos um abaixamento dos salários, chamado fenómeno da anestesia fiscal, porque as pessoas não davam por isso. Ainda me lembro de propor no orçamento em 1978/79 um aumento dos salários dos funcionários públicos de 20 por cento, quando a inflação estava em 24 por cento. Perdiam poder de compra, mas não ligavam muito. Agora, um processo de ajustamento tem que se fazer mesmo com a quebra dos salários. Não há anestesia fiscal e o ajustamento é direto. E portanto dói e não tenham dúvidas que vai haver contestação social.

Alguns economistas defendem reduções nominais dos salários. Concorda?

O Krugman diz que a área do euro só pode subsistir com uma redução dos salários dos países do Sul, face à Alemanha, de 30 por cento. Talvez seja muito, mas que têm que baixar, têm. E vamos ver como é que os mercados vão reagir aos pacotes anticrise. Uma coisa é o que pensa Bruxelas, mas o problema fundamental é saber como é que os mercados reagem. Se eles considerarem insuficiente, teremos novos pacotes. Já o Maquiavel dizia: quando se começa a fazer mal, então faça-se mesmo muito mal. E depois então abrande-se. Aqui tem-se a mania dos paninhos quentes. Quando se tem que fazer, deve fazer-se.

Portanto, acha que o Governo vai ter de adoptar medidas mais duras do que as que foram anunciadas...

Sim, penso que será inevitável.

Fernando Ulrich, presidente do BPI, disse que "o dia em que batermos na parede pode ser no curto prazo". Como é que viu as declarações ?

Pode ser que tenha razão, mas talvez não tenha sido oportuno. Eu sou insuspeito porque gosto muito dele, mas as declarações podem causar alarme.

Acredita que a vinda do FMI está para breve?

Acho que não. É mais provável que, nós, por nossa iniciativa, adoptemos medidas mais duras. Se o FMI chegar, é porque está tudo muito mal.

Preocupa-o a recente quebra do euro?

Não me assusta muito, se não for um trambolhão, porque alarga a nossa capacidade concorrencial. Quando criámos o euro, o dólar valia mais, algo que agora ainda não acontece.

A resposta dos líderes europeus a esta crise tem sido convincente?

O problema mais difícil está na Alemanha. Lá o euro não é lá muito bem visto. Estive lá na Páscoa e nas sondagens realizadas mais de metade eram favoráveis ao retorno ao marco e à saída do euro. É por isso que Angela Merkel se tentou defender politicamente, sendo dura em relação ao auxilio à Grécia. Agora o BCE fez uma coisa boa que foi começar a comprar títulos de dívida soberana. Mesmo assim, a UE está muito centrada no défice, e por isso é que defendo que há vida para além do défice. A UE devia começar a pensar no que é que os países deverão e poderão fazer para tratar mais do crescimento económico. E não dizer apenas que temos que baixar o défice para baixo de 2,8 por cento. Mas a mim não me faz diferença nenhuma que se em vez de o baixarmos em 2013 o baixarmos em 2014. De resto a França já admitiu essa hipótese. O importante é que a tendência seja descendente. Se em 2013 tivermos um défice de 3,8 por cento, sem grandes estragos na economia, não me preocupa.

Acha que o Banco de Portugal fica bem entregue a Carlos Costa?

Tenho uma boa impressão do novo governador, com quem tenho relações pessoais. É um homem que vem do BEI e que conhece bem este meio e os mercados, com boas relações internacionais.

Como avalia a atual situação do sector financeiro? Teme que haja uma ruptura?

O sector bancário está fragilizado, mas tem-se aguentado. Penso que, em termos de liquidez, não me parece que haja grandes problemas, pois temos colaterais suficientes para ir ao Banco Central Europeu buscar dinheiro.

O vice-governador, Pedro Duarte Neves, já veio dizer que a banca europeia precisava de 700 mil milhões de euros para cumprir Basileia II, que entra em vigor já este ano.

Basileia II tem que ser revista, já está mesmo a ser revista. Numa altura destas de fragilidade, exigir estes níveis de solvabilidade e de liquidez vai arrasar com os bancos. O reforço dos capitais fortalece os bancos, mas retira fundos à economia.

in «Público», 07.06.2010