António Costa entende que discutir o caráter dos políticos é "baixa política". Até o repetiu na Quadratura do Círculo. Também não se calam os que fazem coro com José Sócrates e se queixam daquilo que designam como um "assassinato de caráter" - algo que, subentende-se, seria interdito em política.
Não têm razão: os políticos são figuras públicas que, numa democracia, não podem liderar apenas pela imposição da sua vontade, mas pela inspiração do seu exemplo. Sendo que numa democracia os fins, justos ou injustos, não justificam os meios. Por isso, quando falamos de ética republicana, não falamos apenas do estrito cumprimento da lei (ou da aparência do cumprimento da lei), mas de um nível mais elevado de exigência. E de exigência moral.
Os que se sentam na cadeira do poder não são apenas julgados pelos eleitores ou, em casos limite, pelos tribunais: também respondem perante a opinião pública. Por outro lado, se nalgumas democracias o escrutínio das figuras públicas vai até à sua vida íntima, o que não recomendo, é consensual que ao exercício do poder corresponde uma compressão da área de reserva da vida privada, pois os cidadãos querem conhecer as virtudes e os defeitos dos que elegem.
Sócrates não pode pois escapar a um julgamento de caráter - não por alguém sentir que tem especial autoridade moral para o fazer, mas porque os seus defeitos de caráter se tornaram tão evidentes que se transformaram num problema político central.
O primeiro-ministro começa por ter um problema na relação com a verdade e a mentira, parecendo incapaz de as distinguir. As suas declarações sobre o que sabia ou não sabia do negócio PT/TVI há muito que perderam toda a credibilidade e se transformaram num jogo de palavras destinado apenas a criar uma ilusão nos que estão menos informados. Contudo este episódio é apenas o mais recente de uma longa série de meias verdades ou de mentiras que pontuam "um percurso de opacidades", para utilizar uma expressão de Maria Filomena Mónica.
E que opacidades. Nenhum político português deixou atrás de si um rasto tão longo e tão desagradável de casos "mal explicados". Como a memória é curta, recordemos os mais relevantes:
- A forma como assinou dezenas de projetos de arquitectura e engenharia no concelho da Guarda no tempo em que era técnico da Câmara da Covilhã;
- A sua associação, por um ano, à Sovenco, uma empresa de importação de pneus em que um dos sócios era Armando Vara;
- As nunca investigadas conversas intercetadas durante a investigação a Luís Monterroso em que intercede por empresas amigas junto de autarcas;
- As condições de relativa facilidade de que beneficiou para concluir a licenciatura na Independente;
- A controvérsia da atribuição de um generoso subsídio à Deco, acima do previsto legalmente;
- O envolvimento de figuras que lhe são muito próximas no chamado "processo da Cova da Beira", que levou anos a ser investigado;
- A diferença entre o preço que pagou pelo seu apartamento na Rua Castilho, em Lisboa, e o preço pago por alguns moradores;
- O papel que desempenhou como pivot da negociação com Daniel Campelo e que permitiu a aprovação do "orçamento do queijo limiano";
- As dúvidas sobre a forma e a celeridade do licenciamento final do Freeport, a maior parte delas levantada na imprensa ainda antes da denúncia anónima e, sobretudo, da carta vinda do Reino Unido;
- O aparecimento, no Parlamento, por alturas do "caso da Independente", de duas fichas diferentes de deputado, uma delas rasurada, indiciando uma possível falsificação que nunca ninguém investigou;
Não é pois preciso lembrar a sua relação doentia com os jornalistas ou a sua obsessão com a imagem, e ainda menos de apurar o que se passou no processo de compra da TVI, para perceber que um tal "rasto" de dúvidas e casos seria notícia em qualquer parte do mundo. Ao contrário do que José Sócrates tem repetido, não houve tentativas de "assassinato de caráter": houve e haverá dezenas de notícias que existem porque alguma coisa no caráter do político não permite que olhemos para elas como casos isolados, antes formando um padrão coerente. Para mal de todos nós.
Nenhuma das situações citadas, mesmo as que foram investigadas pelas autoridades judiciais, fizeram sentar Sócrates no banco dos réus. Só que o padrão evidenciado não é um problema judicial, é um problema político. E o que está em causa é a confiança dos cidadãos e dos outros agentes políticos num primeiro-ministro de que não se sabe quando está a ser sincero e cujo comportamento, por demasiadas vezes, suscitou dúvidas.
Mais: nasce-se na família em que se nasce, mas os amigos escolhem-se. E se José Sócrates pode facilmente demarcar-se do primo e do tio que invocaram o seu nome no "caso Freeport", é mais difícil manter-se fiel a Armando Vara (para não falar dos administradores nomeados pelo Governo para a PT, nomeadamente do extraordinário Rui Pedro Soares); ou não se ter distanciado de um dos réus do "caso da Cova da Beira", António José Morais, que lhe ministrou três das cinco cadeiras que frequentou na Universidade Independente; ou não se ter pronunciado pelo afastamento imediato de Lopes da Mota do Eurojust quando se levantaram as suspeitas, confirmadas, de que este pressionara os colegas encarregues da investigação do "caso Freeport"; e...
Cícero, o grande tribuno romano, costumava dizer que a virtude dos Estados dependia da virtude nos homens. Para todos os que pensam que o Estado, em Portugal, ainda não é unipessoal, antes serve todos os portugueses, a virtude e o caráter dos políticos não é um assunto para deixar fora do debate público. Sobretudo quando se adensa um sentimento coletivo de impotência e vergonha.
José Manuel Fernandes, Jornalista
in «Público», 26.02.2010