04/06/2011

Portugal meretrizou-se

Há dias, num comentário de televisão, João Cantiga Esteves fazia notar que os homens da troika, em três semanas apenas, realizaram o que os ineptos que nos governam não tinham conseguido levar a cabo em vários anos: pôr de pé um programa para fazer face ao descalabro.

Esta verificação, de uma evidência chocante, não é apenas mais uma medida dessa tenebrosa inépcia governamental. É também um indicador rigoroso da falta de seriedade com que Portugal tem sido governado: toda a gente sabia o que era preciso fazer; ninguém quis tomar a iniciativa da adoção das medidas necessárias por razões de eleitoralismo, conservação do poder e talvez outras ainda menos confessáveis.
Com essa omissão criminosa, o nosso país acaba de perder a sua independência, a sua viabilidade e a sua dignidade.
A questão de qualquer independência nacional, no quadro da União Europeia, prende-se com a capacidade de pôr e de gerir em comum determinadas parcelas da soberania dos estados membros, sem que tal situação prejudique a ultima ratio da soberania de cada um deles.

O funcionamento de mecanismos de solidariedade entre os estados na perspetiva de uma convergência crescente é um dos objetivos mais importantes da própria construção europeia.
Os programas e fundos estruturais, a criação da moeda única e da zona euro, a livre circulação prevista no espaço Schengen, sendo notas de cariz acentuadamente mais federalista numa Europa das nações, mostram que o processo da construção europeia tem de ser híbrido, gradual e sectorial.

Tanto nesses aspectos como em vários outros, a transferência de uma parcela de cada uma das soberanias nacionais para um dispositivo de gestão em comum do conjunto assim integrado não acarreta uma perda da independência nem da dignidade dos Estados que livremente decidiram fazê-lo, cada um deles entendendo cumprir altos objetivos do respetivo interesse nacional.

A independência e a viabilidade dos estados membros são mesmo um a priori da construção europeia e também uma condição da democraticidade dela, tal como foi concebida pelos seus founding fathers e acabou por ficar espelhada nos tratados, por muito que estes deixem a desejar ou tenham aspectos mal calibrados e nocivos, como acontece com o de Lisboa.

Mas o documento que a troika acaba de impor a Portugal significa que o país perdeu a sua viabilidade e a sua independência. É um diktat que corresponde à concretização de uma indignidade vexatória imposta por técnicos aos políticos rascas que a tornaram inevitável.

Antes, quando ainda era um país independente, Portugal tinha o poder de traçar a própria conduta e de impor o respeito dela a terceiros, num quadro de valores civilizacionais partilhados e de respeito e cooperação recíprocos.

Agora é uma espécie de câmara-de-ar esburacada e vazia, à espera de uns remendos. Não vale absolutamente nada, não tem poder nenhum e não vai a lado nenhum. Come e cala. E como o respeitinho é muito bonito, levará no pêlo se não fizer o que lhe mandarem. A Europa já percebeu que "isto" só vai assim e a vergasta já começou a zunir por cima das pátrias orelhas.

A partir de agora, Portugal sujeita-se a inspeções e verificações periódicas, metódicas e severas, tal como as putas de antigamente, que tinham de circular com um livrete de tarja amarela e de comparecer regularmente à inspecção médica. Eram punidas se não o fizessem ou não se apresentassem em condições. E arriscavam-se a ser internadas à força num hospital.

Hoje, está-se perante uma patologia do destino coletivo. Portugal meretrizou-se pelo Governo que tem tido e graças às gentes ignaras que colocaram esse Governo no poder.

Foi um país compreendido, escutado e respeitado. Hoje, não tem virtude, nem dignidade, nem merece o respeito de ninguém. Faz o trottoir europeu como pode e, numa humilhação sem precedentes, sujeita-se ao que lhe derem. Já não é uma simples questão de combate à sífilis e repressão dos proxenetas. Tornou-se imunodeficiente. Se ainda há quem se proponha tratar-lhe da saúde, é só para evitar o efeito de contágio. Foi isso que a troika veio fazer.

Vasco Graça Moura