09/04/2013

Vendedor de Banha da Cobra

Vidas paralelas

Na semana passada, celebrámos o retorno de um homem que tínhamos como morto.

Alguém que foi alvo de grandes injustiças, que se sacrificou por nós e que depois voltou em toda a sua glória. Mas não foi só o regresso de José Sócrates que se festejou. Também se comemorou a Páscoa e a ressurreição de Jesus Cristo.

São duas figuras impressionantes. Uma apresentou-se ao povo como o seu salvador, capaz dos mais incríveis milagres. Mas, à sua maneira, Jesus também era especial.

Subsistem dúvidas sobre o que se passou realmente com Jesus, uma vez que os únicos relatos foram redigidos muitos anos depois da sua morte, por pessoas que, algumas delas, nem o tinham conhecido. E subsistem ainda mais dúvidas sobre o que se passou realmente com Sócrates, uma vez que os únicos relatos são os do próprio.

Enfim, podia continuar aqui a usar este artifício estilístico para ampliar a grandeza de Sócrates, estabelecendo paralelismos entre Sócrates e Cristo ao referir características divinas do messias e equiparando-as às características de Jesus. (Cá está outro. Peço desculpa.) Mas o resto é incomparável. Afinal, só ao fim de mais de um século é que Jesus teve uma verdadeira religião em seu nome, enquanto José Sócrates teve-a ao fim de uma semana.

Percebe-se porquê. É uma questão de infra-estruturas. Para crescer, o cristianismo teve de esperar que Saulo de Tarso caísse na Estrada de Damasco e se convertesse. Ora, a religião de Sócrates não está dependente de uma só estrada para converter discípulos. Há, espalhadas por Portugal, várias estradas onde podemos ter a real noção do poder de Sócrates. A minha predilecta é a A17, entre Aveiro e Leiria. Enquanto toda a gente usa a A1, estou isolado do resto do mundo. São 150 km de solitude onde qualquer pessoa facilmente se converte a José Sócrates. Como essa, há várias estradas vazias, ideais para a instrospecção. É só escolher.
De uma maneira ou de outra, Sócrates tocou-nos a todos. A uns tocou no coração. A outros tocou no sítio do coração, mas por cima da roupa. Foi um daqueles toques mais ao estilo dos apalpões que os seguranças do aeroporto usam, de quem revista o bolso do casaco à procura da carteira. Mas qualquer português tem um episódio de Sócrates que o tenha marcado mais.

O meu é a parábola de Chico Buarque. Naquele tempo, Sócrates estava em visita oficial ao Brasil. Revelou que Chico Buarque queria muito conhecê-lo e tinha-o convidado para tomar um cafezinho. Os jornais apressaram-se a transmitir esta boa nova que muito prestigiava o país. Se um cançonetista brasileiro queria conhecer o nosso primeiro-ministro, o futuro de Portugal só podia ser radioso. Em breve, haveria um artista plástico zairense a desejar travar conhecimento com Sócrates. Ou um encenador turco. Um bailarino indonésio, porque não? As possibilidades eram imensas.

Infelizmente, Chico Buarque veio desmentir esta linda história: afinal, José Sócrates é que se tinha feito convidado para sua casa. Só que tinha dito aos jornalistas o contrário.

Por isso, quando Sócrates fez questão de dizer que a RTP é que o tinha convidado, recordei esse episódio com ternura. O meu Sócrates continua igual.

José Diogo Quintela
in «Público», 07-04-2013