23/04/2013

D'ont cry me Argentina

O texto de hoje é da autoria de Andrés Malamud, cientista político e investigador do Instituto de Ciências Sociais. O Andrés era membro do governo da Argentina aquando do colapso de 2001.

A 26 de julho de 2001, pelas 21 horas de Buenos Aires, mandei um email que achei original a um amigo americano. Nele informava-o que o default (calote) da Argentina era inevitável e que apenas faltava saber o quando. Eu começava a ter essa conversa diariamente com os meus colegas de governo, mas eles gozavam comigo. "Por que é que gostas tanto de dizer default?", mimicavam. "É o som da palavra que te excita?", zombavam, acho que com carinho. Ninguém acreditava nessa possibilidade, nem no oficialismo nem na oposição.


A Lei de Convertibilidade, que estabelecia que o governo daria um Dólar a todos os que entregassem um Peso, garantia a poupança dos argentinos e a estabilidade da economia.


A 26 de julho de 2001, eu era assessor de gabinete no Ministério de Justiça e Direitos Humanos e o meu amigo era o politólogo dos EUA que melhor conhecia a Argentina. Por isso, ele era consultado frequentemente pelo Departamento de Estado, e eu suspeitava que também teria feito trabalhos para a CIA. Como analista, entenda-se.


A sua resposta foi imediata e lapidar: "Conta-me algo que eu não saiba". E eu que achava que a minha era insider information!


O resto da história é conhecido. A 1 de dezembro, para deter uma corrida aos bancos que ameaçava todo o sistema financeiro, o governo decretou o corralito (restrição ao levantamento de depósitos). Mas numa economia com um alto grau de informalidade, sem dinheiro vivo não há transações - ou seja, falta comida no lar. Seguiram-se assaltos a supermercados, por vezes organizados e sempre aproveitados por fações opositoras, grupos anárquicos e delinquentes comuns.


A repressão policial alimentou a violência, e a 20 de dezembro o governo demitiu-se entre gases lacrimogéneos e 30 mortos em enfrentamentos de rua. A 23 de dezembro, um governo provisório declarou o default perante uma ovação em pé do parlamento nacional. A 30 de dezembro, o governo provisório demitiu-se perante massivas manifestações populares contra a corrupção sob o lema "que vão todos (os políticos) embora, que não fique nenhum".


Em janeiro de 2002, um mês depois do corralito, um novo governo provisório decretou o fim da convertibilidade: a Argentina saía do dólar. A economia parou literalmente durante dois meses: as pessoas iam ao emprego e ficavam a olhar umas para as outras. No terceiro mês, boa parte delas resolveu o problema ficando sem emprego. A inflação disparou e a Argentina afundou. Um ano e poucos meses mais tarde, o governo voltou a cair por causa de mais duas mortes violentas. Os partidos políticos implodiram e o novo presidente foi eleito com apenas 22% dos votos.

Mas, no terceiro ano, o país saiu do inferno. Durante uma década, a Argentina passou a exportar mais do que importava, a arrecadar mais do que gastava, e passou a ter alguma estabilidade política. Há quem diga que agora os tempos de bonança estão para acabar, mas isso é outra história. A que aqui se contou é a que espera, quiçá, metade da Europa - e não apenas a Portugal.

Meia Europa que continua a achar que pior não é possível e que a austeridade, ou então a resistência à austeridade, pode travar o colapso. Quando disse ao meu amigo americano que o euro não era para durar, ele manteve o discurso de então: "conta-me algo que eu não saiba".

Henrique Raposo
in "Expresso", 23.04.2013