A bem do funcionamento regular das instituições, devemos respeitar a decisão do TC, o que é diferente de com ela sempre concordar.
A música toca, os pares dançam alegres. Os que não dançam bebem, fumam e conversam. Num canto um grupo discute, animado, os negócios. Ouvem-se pequenas risadas. Numa mesa joga-se o bingo. Nem o capitão sabe, ainda, que o barco se está a afundar.
1. Estamos no início de uma queda. O Acórdão do Tribunal Constitucional de sexta-feira passada é histórico. Marcará provavelmente o início do fim da III República tal como a conhecemos, isto é, com esta Constituição, com o euro, com estes partidos políticos. Isto porque a dívida pública continua numa dinâmica explosiva (124% do PIB em 2012 e provavelmente 128% em 2013), os encargos com essa dívida sobem e o crescimento económico é ainda uma miragem.
O Governo português, com a adesão de Portugal ao euro, ganhou várias coisas (integração num espaço político europeu, baixas taxas de juro por exemplo), mas perdeu outras (a soberania monetária e a política cambial). Com o Tratado orçamental ficou condicionado na política orçamental (objetivo de equilíbrio das contas públicas em condições normais). Com o Acórdão do Tribunal Constitucional, ficou ainda mais limitado. A implicação singela do Acórdão é que neste processo de ajustamento orçamental e de tentativa de redução do défice orçamental - essencial para reganharmos a soberania nacional e não estarmos sujeitos a ditames da troika - a via não pode ser essencialmente a de redução da despesa (pois só se aceita um corte ligeiro nos salários, art.º 27.º, mas não na despesa bruta em pensões), mas sim a do lado do aumento da receita: contribuição extraordinária de solidariedade (art.º 78.º), sobretaxa de IRS de 3,5% (art.º 187.º), redução de escalões (186.º). Não apenas os orçamentos devem estar tendencialmente equilibrados (Tratado) como esse equilíbrio deverá provir do aumento da receita.
2. É precisamente porque não é clara a Constituição que necessitamos de um tribunal para a interpretar. A bem do funcionamento regular das instituições, devemos respeitar essa decisão, o que é diferente de com ela sempre concordar. Acho relevante e coerente a argumentação em torno da não constitucionalidade das contribuições obrigatórias de recebedores de prestações associadas com doença ou situação de desemprego. Discordo, quer da aceitabilidade da contribuição extraordinária de solidariedade quer da argumentação da inconstitucionalidade de um corte moderado e progressivo (isenções seguidas de cortes proporcionalmente maiores) em salários e pensões. O TC argumenta que um aumento de imposto ou uma redução salarial é a mesma coisa do ponto de vista da "repartição dos encargos públicos", pelo que estando os funcionários públicos sujeitos a ambos e os do privado, hipoteticamente, só ao aumento de impostos, está a haver tratamento diferenciado, o que, na opinião do tribunal, é excessivo. O ponto fraco da argumentação do tribunal é precisamente este. Assume implicitamente que os do privado só estão sujeitos ao aumento de impostos dos do público e não a redução salarial. O que é verdade na óptica das implicações do OE. Mas já não o é se pensarmos numa conjuntura económica em que aumenta dramaticamente o desemprego, sobretudo de antigos trabalhadores do privado, em que o novos trabalhadores são contratados a salários muito mais baixos, em que há uma descida no valor das prestações de serviços, em remunerações acessórias, etc. É pois falacioso o argumento implícito de que só existe queda salarial na administração pública. E se esta hipótese não for válida, a argumentação do TC sofre um profundo revés e levaria porventura a outras conclusões.
Gostaríamos de ter visto esclarecido no Acórdão se a Constituição (CRP) trata de forma simétrica subidas de impostos e descidas de salários. A CRP é omissa em relação a cortes de salários, mas não aos impostos. Isto não significa que não deva haver limites ao "sacrifício razoável" de cortes de salários e ao tratamento diferenciado de "funcionários" e trabalhadores do privado. Esses limites são obviamente subjetivos. Considerámos e defendemos aqui a inconstitucionalidade de dois cortes salariais (OE 2012), mas não de um corte (OE 2013). O TC deliberou de outra forma.
3. A crise de regime, a que assistimos, obviamente que não é da responsabilidade do Constitucional e revisitar o resgate de 2011 ajuda a compreender as narrativas passadas e presentes e os caminhos de saída. Aquilo que nos levou à atual crise de regime foi o mau funcionamento das nossas instituições (em particular regulatórias e políticas). O sistema partidário, o sistema político democrático e o sistema empresarial público (central, regional e local) construído paulatinamente nas últimas décadas levaram, com a ajuda da crise internacional, à situação em que estamos. Não foi o chumbo do PEC IV que levou ao resgate. Antes dessa votação realizou-se no ISEG um debate público sobre a eventual necessidade desse resgate, baseado em simulações sobre a dinâmica da dívida pública. Silva Lopes, João Duque e eu próprio defendemos que ele era inevitável. João Ferreira do Amaral, que não era desejável. O problema da quase universal ocupação do espaço público mediático por ex-governantes ou ex-líderes do passado (obviamente que Sócrates tem os mesmos direitos que Marcelo, Marques Mendes ou Santos Silva) é que obstrui a uma leitura crítica da realidade da qual foram protagonistas. Não dão espaço a diferentes leituras, não apenas do passado, mas sobretudo não permitem repensar e reinventar o futuro. Os históricos têm uma função muito importante a desempenhar que é repensar o funcionamento interno dos partidos, a criação de grupos de estudo internos, o debate programático, e pela sua experiência, a reforma do sistema político.
4. Esta reforma do sistema político tem sido discutida à margem, individualmente, em pequenos grupos ou em manifestos. Aqui, é de salientar o recente "Manifesto pela Democratização do Regime" subscrito, entre outros, por Henrique Neto, Elísio Estanque, Luís Salgado Matos, Eurico Figueiredo e Rui Tavares, que, aqui no PÚBLICO, tem abordado várias vezes esta temática de que é necessário abrir o sistema político introduzindo primárias, clarificando o financiamento partidário e aumentando a personalização do voto. O manifesto tem infelizmente uma redação algo patriótica e anti partidos que não subscrevo. Se se quer fazer lóbi para a reforma do sistema político, é necessário deixar a retórica de parte e consensualizar uns princípios básicos de reforma - por exemplo, permitir a personalização do voto como acontece na maioria dos países europeus - e convencer os atores políticos de que é a saída para a credibilização do regime.
5. Para além do problema político temos um económico. A nossa adesão à então CEE e o acesso aos fundos estruturais e posteriormente a adesão ao euro foram oportunidades não aproveitadas de alterar a estrutura produtiva e aumentar a competitividade. Hoje, pelas razões acima aduzidas (falta de instrumentos de política monetária e, em parte, orçamental) e mais bem explicadas nos dois livros que são lançados para a semana (de Vítor Bento e João Ferreira do Amaral) temos um problema económico entre mãos a resolver. Convém estudá-lo para encontrar uma solução.
6. A crise política, agravada pela decisão do Constitucional, não terá um desfecho imediato. Portugal necessita de renegociar as maturidades da dívida e deveria diminuir os juros já. Mas nada será como dantes, após este Acórdão do Constitucional. Haja esperança e resiliência.
Paulo Trigo Pereira
in «Público», 07-04-2013