17/02/2012

Movimento perpétuo

Extremo ocidental
Os "direitos adquiridos" dos "cavaquistas anónimos"

Há um politicamente correto que só subsiste porque em Portugal se fala muito e se pensa pouco

A física dos direitos adquiridos

Noronha do Nascimento é um homem antigo. Nota-se na pompa, na pose, no discurso. Como homem antigo, o nosso presidente do Supremo Tribunal de Justiça é também alguém formado no tempo das "duas culturas", a científica e a humanística, e, por isso, se sabe citar Camilo, tem mais dificuldades com a segunda lei da termodinâmica. Não fosse isso e certamente não teria falado como falou de "direitos adquiridos" no seu discurso de abertura do ano judicial.

Bem sei que esta lei é uma das mais difíceis de entender da física, pois não é intuitivo que, em todos os sistemas fechados, exista uma tendência para a entropia subir. No entanto, é esta lei que explica por que razão não é possível construir uma máquina de movimento perpétuo. Se a transpusermos para a vida do dia-a-dia, ela também nos ajuda a perceber porque é que uma casa se desarruma, mesmo que não a desarrumemos deliberadamente. Assim, se a única forma de manter uma máquina a trabalhar é nunca deixar de adicionar energia, só a "energia" de uma dona de casa mantém o lar arrumado.

Na vida das sociedades, na economia, o equivalente ao movimento perpétuo é o progresso inelutável: um como o outro correspondem a utopias irrealizáveis. A história da humanidade está cheia de episódios de civilizações que entraram em colapso, existindo até algumas que desapareceram, quando desapareceu a sua fonte de energia - um caso bem interessante é o do fim da civilização da ilha da Páscoa, provocado pelo consumo das suas florestas até à última árvore. Muitos dos problemas que vivemos hoje no Ocidente também podem ser relacionados com a diminuição de algumas das suas "fontes de energia". Basta pensar na crise demográfica ou na dificuldade em fazer funcionares dos motores da inovação, sobretudo na Europa.

Quando chegam a estes pontos críticos - e nós, em Portugal e na União Europeia, estamos num ponto crítico -, as sociedades, se continuam a viver como antes viviam, não se regeneram, antes entram em colapso. Para os habitantes da ilha da Páscoa abater as árvores das suas florestas era o que estavam habituadas a viver - era um hábito adquirido... -, pelo que as abateram até não restar mais nenhuma. Para venerandas figuras a chegarem ao momento de se tornarem pensionistas (mesmo se abastados pensionistas), a ideia de que não receberão as reformas tal e qual como esperavam receber deve ser tão estranha como teria sido a de procurar fontes de energia alternativas às florestas em via de desaparecimento. Por isso chamam às suas expetativas "direitos adquiridos" e enroupam-nas com argumentos sibilinos.

Como num sistema fechado a tender para a máxima entropia, para a morte térmica, as sociedades em que vivemos deixaram de ter energia suficiente para acrescentarem a riqueza necessária à consagração dessas expectativas. Não é um mal temporário e passageiro, é um mal profundo e há muito diagnosticado, um mal fatal, se tudo continuar como dantes. Daí que seja uma falácia tomar como "adquiridos" direitos que só seriam sustentáveis, se a nossa máquina económica continuasse a trabalhar com o vigor de há algumas décadas. A actual crise só precipitou essas evidências.

O tremendismo apocalítico

Como homem antigo, Noronha do Nascimento cita Rousseau. Cita mal. Duplamente mal. Primeiro porque o seu "contrato social" não vem na linha dos propostos por Hobbes e Locke, como sugere, antes se lhes opõe. Depois porque, para Rousseau, a sociedade ideal é governada não democraticamente, antes por uma suprema "vontade geral" - "cada um de nós coloca na comunidade a sua pessoa e todos os seus poderes, sob a direcção suprema da vontade geral" -, o que implica abdicar de todos direitos individuais (e não apenas dos "adquiridos") - "a total alienação por cada associado de ele próprio e de todos os direitos, para toda a comunidade".

O princípio das sociedades democráticas é diferente. Baseia-se na ideia de que os homens são imperfeitos, o governo deve ter poderes limitados e é natural a existência de conflitos. Não há pois, ao contrário do que sugere o presidente do Supremo, qualquer "noção subliminar do contrato tacitamente aceite pelo povo", um povo que só aceitaria o governo, se este cumprisse certas "prestações contratuais". Esta curiosa forma de raciocinar leva-o a descrever para Portugal uma situação pré-revolucionária, tipo vésperas da Revolução Francesa - diagnóstico que, porém, não parece colar à realidade, como ainda ontem se viu com o relativo fracasso da greve dos transportes.

O que nos leva ao tremendismo da sua anunciada "caixa de Pandora" capaz de nos levar ao "Inverno (ou ao Inferno) do nosso descontentamento". Aqui Noronha não está sozinho. Não têm faltado porta-vozes desse povo que, para surpresa geral, ainda não assaltou a nossa Bastilha, fosse ela qual fosse. Maria José Morgado até já vê magistrados a passar fome (porventura fome dos brioches de Maria Antonieta...). E os "cavaquistas anónimos" que, este fim-de-semana, irromperam na cena política, dizem-se prontos a marchar contra o ministro das Finanças.

Tudo isto de pouco valeria, se não tivesse recebido algum gás vindo de Belém, onde afinal mora um Cavaco Silva que também é, à sua maneira, um homem antigo. Só assim se compreende o seu evidente mal-estar - o seu desastroso mal-estar - com as pensões que recebe. É que se tivesse hoje 40 ou 50 anos saberia, como sabem todos os que andam por essas idades, que no futuro nunca haverá dinheiro para pagar reformas semelhantes àquelas de que ainda beneficia a sua própria geração. E, no entanto, todos os que têm 40 ou 50 anos "descontaram toda a vida", talvez até mais do que descontou Cavaco Silva. O sistema de Segurança Social do seu tempo acabou, e ele é apenas a menor das vítimas, algo que tem a obrigação de saber.

Os cavaquistas clandestinos

Não deixa também ser curioso - mas não é surpreendente - que os nossos "cavaquistas anónimos" tenham adotado parte da linguagem política da oposição.

(Breve nota: como é possível que, em democracia, com uma imprensa livre, se aceite que alguém se proteja com o anonimato para proferir opiniões? Que regras são estas? Que escrutínio podem ter tais afirmações? O que é que isso revela de doentio e obscuro na relação com a opinião pública?)

O Expresso anunciava, por exemplo, que o Presidente estaria contra o "Estado mínimo". Estado mínimo? Saberá o Expresso (saberá o Presidente) que o Estado gasta, em Portugal, metade da riqueza do país? Será razoável considerar que teremos um "Estado mínimo", se se cumprir o prometido por este Governo, isto é, uma redução, em 2015, para 43,5% do peso das despesas públicas no PIB. 43,5% de toda riqueza produzida em Portugal vai para o Estado e ainda falamos de "Estado mínimo"? O que será então o Estado máximo?

O PÚBLICO dava mais um passo: anunciava que um número indefinido de "cavaquistas anónimos" considerava Vítor Gaspar um "ultraliberal". Não chegava liberal, ou mesmo neoliberal - o insulto preferido por estes dias -, era preciso dar o salto para "ultraliberal". Saberá o PÚBLICO (saberão os "cavaquistas anónimos") o que é um ultraliberal? Como classificariam então Ron Paul, candidato nos EUA à nomeação pelo Partido Republicano? Como extraterrestre?

Infelizmente todo este non senseé revelador. Traduz a incapacidade de discutir políticas sem ser no quadro de referências que, mesmo sendo muito marcadas ideologicamente, se pretendem apresentar como neutras. É uma lógica que tem de ser quebrada, pois o verdadeiro "fanatismo ideológico", tão criticado por alguns, não está em quem tenta apagar o fogo da dívida e do défice, mas em quem insiste em que se deixe arder em nome de valores ditos superiores. É que esses supostos valores, ou dos chamados "avanços civilizacionais irreversíveis", muitos propalados apenas em nome da manutenção de inconfessáveis direitos adquiridos, são na prática tão utópicos, irrealistas e autodestrutivos como a convicção de que haveria sempre árvores para cortar na ilha da Páscoa.

Os "cavaquistas anónimos" apenas vieram dar força a este politicamente correcto, que só subsiste porque em Portugal se fala muito e se pensa pouco.

 
José Manuel Fernandes, Jornalista
in «Público»