11/02/2012

Grécia

Entre o póquer e a tragédia

A crise grega aproxima-se de um desenlace. Cresce o número dos que, na Europa, passaram a apostar numa falência da Grécia, porque não faz as reformas exigidas, e daqueles que, na Grécia, estão persuadidos de que os europeus serão obrigados a pagar, façam eles o que fizerem. Este resumo, feito por um diplomata, indica que estamos num momento de fronteira. Para Bruxelas, a falência da Grécia é um pesadelo, pelo risco de efeito em cadeia sobre os países do euro, a começar por Portugal e Espanha. Para os gregos, que repudiam a austeridade mas querem permanecer no euro, a rutura significaria uma catástrofe. Joga-se póquer.

Para lá dos muitos erros e hesitações, a UE queima as derradeiras ilusões de controlar a situação grega. É simples: os governos gregos não querem, e talvez não possam, fazer a maioria das reformas exigidas. A questão excede os interesses eleitorais dos partidos - eleições em Abril - ou a exasperação social: após drásticos sacrifícios, os gregos não vêem perspetiva de saída da crise. O problema excede também o debate sobre a bondade ou a perversão das receitas de austeridade impostas a Atenas. O centro do problema é outro: diz respeito ao Estado, é eminentemente político.

Para que a Grécia se salve, será necessário reformar de alto a baixo o Estado e os "pactos" em que economia e sociedade assentam. O ultimato europeu sobre as reformas, que será debatido amanhã no Parlamento grego, significa fazer explodir o sistema político grego. Nada mais, nada menos.

É inevitável uma passagem pela História. O Estado grego não funciona como os outros. Estigmatizar os gregos é um exercício mistificador. O problema está nas instituições. O Estado, que por vezes foi autoritário, é ao mesmo tempo tentacular e débil.

Após a emancipação do Império Otomano, em 1829, o Estado foi formalmente construído por funcionários alemães que acompanharam o príncipe bávaro Otão. A Grécia era um mosaico populacional e territorial, unido pela religião e pela língua. "A centralização foi imposta por um exército de mercenários europeus contra a resistência de uma sociedade que vivia num quadro político, institucional e cultural otomano, ou seja, fragmentado e reticular", lembra Georges Prevelakis, especialista em geopolítica balcânica.

Ao longo dos séculos XIX e XX, esse Estado foi sendo construído, com avanços e regressões, na base de um compromisso. Prossegue Prevelakis: "O poder serviu-se do aparelho de Estado não apenas como instrumento de repressão mas também como um sistema de distribuição de uma espécie de renda ou tributo. A principal moeda de troca foi o emprego pelo Estado. Um lugar na administração traduzia-se num primeiro tempo em submissão e, depois, em votos".

"O princípio central da sociedade grega foi sempre o clientelismo político, um sistema em que o apoio político é concedido em troca de vantagens materiais", escreve o jornalista Takis Michas. "Neste contexto, é primordial o papel do Estado enquanto principal fornecedor de prestações a grupos e indivíduos." Corrobora o economista Kostas Vergopoulos: "Desde meados do século XIX que nada se pode fazer na Grécia sem passar obrigatoriamente pela máquina do Estado."

Para distribuir uma renda às clientelas, o Estado foi forçado a elevar a carga fiscal sobre a economia, suscitando uma cultura de fraude fiscal; e a recorrer ao empréstimo estrangeiro, o que gerou colapsos das finanças públicas. Atenas esteve sob tutela de uma comissão financeira internacional entre 1897 e 1936, para garantir o pagamento do serviço da dívida aos credores.

Após a queda da "Ditadura dos Coronéis", em 1974, o sistema não mudou, foi modernizado e alargado. Os dois partidos dominantes, o Pasok (social-democrata) e a Nova Democracia (conservador), reorganizaram as redes de patrocínio, graças à adesão à Comunidade Económica Europeia, em 1981. Sobretudo o Pasok, liderado por Andreas Papandreou (pai do ex-primeiro-ministro), promoveu um generoso welfare state assente numa lógica eleitoralista e não numa racionalidade económica, sublinha o politólogo Christos Lyrintsis.

As empresas públicas são a extensão do tentacular Estado clientelar. Os sindicatos, designadamente os do funcionalismo e do sector público, são parte activa deste sistema.

A adesão ao euro resolveu o impasse em que o sistema se encontrava em meados dos anos 1990. Abriu a torneira dos mercados financeiros. Atenas não reunia condições para entrar na moeda única. Deve-o - ironicamente - a Paris e Berlim, guiados por interesses geoestratégicos - estabilizar os Balcãs e o Mediterrâneo Oriental. A Grécia era um pequeno país cuja eventual bancarrota não assustava a próspera UE.

Havia outro factor: "A Grécia ocupa um lugar central no imaginário europeu." A própria criação do Estado grego moderno foi "um grande empreendimento identitário europeu". A Grécia Antiga era a raiz da sua cultura.

Como reformar o Estado clientelar? "A classe política recusa o questionamento da sua política estatista, pois ela permite-lhe constituir clientelas políticas. Na Grécia não se vota por ideologias, vota-se por quem nos ajuda materialmente", diz ao Libération o historiador Nicolas Bloudanis. A tragédia grega é que o seu sistema político impede os seus governos de enfrentar a crise da dívida. Resta a experiência da arriscada explosão do sistema.

Ontem, Atenas parecia estar "a ferro e fogo" e o Governo ameaçava desfazer-se. Sob impulso da Alemanha, e empurrada por opiniões públicas crescentemente hostis à ajuda a Atenas, a UE lançou um ultimato, visando desta vez promover uma espécie de "state building" dentro da própria União. É um jogo de alto risco, que poderá despertar o latente anti-ocidentalismo grego.

A Grécia tem pela frente a escolha entre "ser Europa" ou "regressar aos Balcãs". Mas também é complicada a escolha da UE. Pensando em geopolítica, avisa Prevelakis: "Uma eventual saída da UE, ou mesmo da zona euro, transformaria de novo a Grécia num campo de batalha entre interesses ingleses, alemães, franceses, americanos, russos e chineses." Humilharia e enfraqueceria a Europa, que se quer modelar e "seria obrigada a confessar o fracasso em "europeizar" um Estado, membro há 30 anos e que considera o berço da democracia"

Jorge Almeida Fernandes
in «Público», 11.02.2012