22/08/2011

Dois maridos

O Diário de Notícias de 9 de agosto titulava em manchete: ‘Violência doméstica leva polícia a investigar ex-deputado e marido’. Convenhamos que era um título muito pouco compreensível. Apetecia dizer: «Importa-se de repetir?». Mas por isso mesmo fui ler a notícia.

Os títulos incompreensíveis têm muitas vezes essa vantagem: levam os leitores a ler as notícias, na expectativa de perceberem do que se trata. Pelas mesmíssimas razões, os títulos demasiado explicativos têm o efeito contrário: afastam a leitura, pois as pessoas acham que já tudo está dito e que o texto pouco ou nada adiantará.

Pois bem, a notícia do DN relativa ao título em causa dizia o seguinte: «A chamada para a esquadra de Benfica foi feita a 12 de Julho por Carlos Maceno, que apresentava escoriações no pescoço, e acusou o marido, Jorge Nuno de Sá, de agressão». Pensei que tinha lido mal e voltei atrás. É certo que a prosa não era propriamente modelar. Não é muito ortodoxo uma notícia começar por «A chamada para a esquadra de Benfica foi feita a 12 de Julho…». Mas o que me desnorteou não foi isto – foi o nome da mulher. Havia supostamente uma mulher que tinha acusado o marido de agressão. Ora a mulher chamava-se Carlos Maceno. Foi isto que me fez voltar atrás.

Verifiquei, porém, que tinha lido bem o nome.

E neste preciso momento começou a fazer-se luz no meu espírito. A palavra «ex-deputado» constante do título da notícia, associada a uma suposta relação gay, recordou-me um facto ocorrido há poucos meses e de que eu ouvira falar: o casamento de um deputado do PSD com um homem. Esta notícia do DN reportava-se pois, certamente, a esse ‘casal’. O ex-deputado agredira a mulher (ou o marido?) e esta fizera queixa à Polícia.

Continuei a ler: «O ex-deputado do PSD, actualmente coordenador para a Educação da Freguesia de Alcântara, recusa falar da sua vida privada mas garante que nunca agrediu ninguém. O casal, que se casou a 31 de Janeiro, está já separado».

Neste ponto da leitura voltei a parar. Separado? Mas os gays, que travaram uma luta tão grande, tão longa e tão dura para poderem casar-se, separam-se afinal com a mesma facilidade dos outros casais? Não seria normal que, pelo menos nos primeiros tempos de vigência da nova lei, procurassem ser exemplares, até para provarem aos opositores que as suas convicções eram fortes e sua luta era justa?

Acresce que um dos membros do ‘casal’, Jorge Nuno de Sá, na altura deputado, pessoa com alguma notoriedade social, ao assumir o risco de tornar pública a sua homossexualidade e o seu amor por um homem, parecia querer dizer a todos que a decisão de se casar fora devidamente amadurecida. Ora, depois disso, qual o sentido de se separar ao fim de meia dúzia de meses?

Mas a leitura de mais pormenores sobre o ‘casal’ ajuda a lançar alguma luz sobre a história. O ainda marido (ou mulher?) de Nuno de Sá é um massagista de nacionalidade venezuelana, de nome Carlos Eduardo Yanez Marcano (e não Maceno como dizia o DN), com menos 10 anos do que ele. Perante este bilhete de identidade, compreendem-se melhor as zangas, as agressões – e finalmente a lavagem de roupa suja na praça pública.

O jovem venezuelano acusa o marido de o ter agredido na cabeça com um computador e um telemóvel – o que faz irresistivelmente lembrar a trágica cena ocorrida num hotel de Nova Iorque, em que Renato Seabra atacou Carlos Castro com um plasma.

O ex-deputado do PSD garante, porém, que não agrediu ninguém.

Seja qual for a verdade, uma coisa é certa: um dos membros do ‘casal’ está a mentir. Ou Carlos Marcano se queixou à Polícia sem razão e não foi agredido pelo marido (embora tivesse escoriações patentes no pescoço) ou Nuno de Sá mentiu e agrediu mesmo Marcano.

Nesta altura do texto o leitor já percebeu uma dificuldade semântica com que me tenho defrontado neste texto: não havendo neste ‘casal’ um marido e uma mulher, poderá falar-se em dois maridos? Ou seja: Carlos Marcano é marido de Jorge Nuno de Sá e este é marido de Carlos Marcano?

Não é fácil descrever estas situações. Por essas e por outras, numa recente entrevista a Manuel Luís Goucha reafirmei a minha oposição aos casamentos homossexuais. «O casamento é entre um homem e uma mulher», respondi. As palavras que usamos têm um significado que o tempo e o uso foram consolidando – e ‘casamento’ na nossa civilização quer dizer a união entre um homem e uma mulher, ou seja, o acto fundador de uma família.

Querer que a palavra tenha outros significados é uma aberração que põe em causa as próprias referências do meio em que vivemos.

Claro que dois homens podem viver juntos – sejam irmãos, amigos, companheiros ou sócios em qualquer coisa. Como duas mulheres podem viver juntas, por variadíssimas razões. E é justo que as pessoas que vivem juntas tenham certos direitos em comum. Mas, para isso, não é necessário pôr em causa as nossas referências nem baralhar os nossos pobres espíritos.

Nem – já agora– complicar a vida aos pobres jornalistas, pondo-os a pensar se estará certo dizer ‘o ex-marido de Jorge Nuno de Sá’.

Confesso que, até ao dia de escrever este texto, não me tinha debruçado sobre o modo como deverão tratar-se os dois membros de um ‘casal’ homossexual. Será correto falar de ‘dois maridos’ ou de ‘duas esposas’?

Num romance célebre, Jorge Amado falava, de facto, da existência de dois maridos. Mas aí havia uma mulher no meio: Dona Flor. E, se bem me lembro, os dois maridos não estavam propriamente no mesmo plano, pois um já tinha morrido e só reaparecia à noite para consolar a mulher.

Agora um casamento onde há dois maridos e nenhuma mulher é coisa muito estranha. Ainda mais estranha se acabar com uma queixa na esquadra. Embora uma queixa na esquadra por agressão conjugal – quer se trate de dois maridos, de duas mulheres ou de um marido e uma mulher – seja sempre uma forma muito triste de acabar um casamento.


José António Saraiva
in «SOL», 22.08.2011