12/10/2013

Lavar a história

Fui ontem ver o Mordomo ao cinema.

Fui pela música do Rodrigo Leão, mas também porque a luta pelos direitos civis dos negros me interessa (até pelo seu paralelo com as atuais lutas pelos direitos civis dos homossexuais).

Talvez porque hoje em dia Hollywood seja Democrata, parece que simplesmente se recusam a aceitar a História.

Sobre as lutas relativas aos direito civis, assisti a um tremendo branqueamento das culpas Democratas.*

A verdade é que nos anos 50 e 60, os campeões das lutas pelos direitos civis eram Republicanos e não Democratas. Ao longo de todo o filme, assiste-se a uma grosseira manipulação.

A história do mordomo na Casa Branca começa com Eisenhower a ordenar que tropas federais protejam um negro que pretende frequentar uma universidade segregacionista. O presidente enviou tropas para Little Rock, Arkansas, porque o governador deste Estado deu ordens à polícia estadual para não deixar entrar o negro em causa.

Como se sabe, Eisenhower era Republicano. O que não se disse no filme foi que o governador do Arkansas era Democrata. Mais grave ainda, esta atitude de um governador Democrata era comum.

Em Alabama, em 1963, passou-se outro caso semelhante também com um governador Democrata.

Em 1957, quando Eisenhower tentou aprovar o que ficou conhecido como o 1957 Civil Rights Act foi obrigado a moderar bastante os objetivos do texto inicial por causa da forte oposição liderada por Lyndon B. Johnson, que, na década seguinte, seria presidente Democrata.

Mesmo uma versão bastante mitigada do texto original contaria com o voto contra de dúzia e meia de senadores, todos eles democratas… Vale a pena ler esta carta de Republicano Val J. Washington dirigida a LBJ. No filme, Lyndon B. Johnson é glorificado como um campeão da luta negra. O seu Civil Rights Act é apresentado como um dos maiores avanços das lutas pelos direitos civis.

O que o filme se esquece de dizer é que o texto aprovado era, na sua essência, igual àquele que Eisenhower tinha proposto e a que Lyndon B. Johnson se tinha firmemente oposto em 1957.

Richard Nixon é tratado com bastante desprezo no filme, dando a entender que não passa de um mero racista que quer o voto dos negros. Referir que, ainda no senado, ele se tinha batido pelos direitos dos negros… nem pensar, estragaria o enredo.

Havia algo que eu esperava também ver retratado, que foi o papel das armas nos movimentos de libertação dos negros. Na verdade, quando os negros tinham de enfrentar o Ku Klux Klan (quase exclusivamente composto por Democratas) estavam duplamente desprotegidos. Estavam desprotegidos pela polícia e estavam desprotegidos porque o direito constitucional a ter arma lhes era negado.

O próprio Martin Luther King, depois de um ataque a sua casa em meados dos anos 50, viu ser-lhe negado uma licença de porte de arma. Foi no fim dessa década, graças à pressão da National Riffle Association, que os negros passaram a ter o direito a usar armas. E foi nessa altura também que os homens dos capuchos brancos do KKK aprenderam que enfrentar negros armados era bem mais complicado. Até porque aqueles capuchos brancos eram alvos fáceis à noite. O declínio do KKK começou aí.

Enfim, o filme até conseguiu que Ronald Reagan passasse por racista. Na verdade, de acordo com o filme, Ronald Reagan é o primeiro presidente a ordenar que os empregados negros da Casa Branca recebam um ordenado igual ao dos brancos (que até aí era pouco mais de metade). É também o primeiro presidente a convidar a personagem principal para um banquete na Casa Branca.

Mas, claro, o filme não poderia dar tais créditos a um Republicano. Logo a seguir, com a demissão do mordomo, é-nos dito que nada era sincero. Era tudo oportunismo. Mas, mais uma vez, a verdade é diferente. A própria personagem real (aquela em que se baseia a personagem do filme) já o disse em diversas entrevistas. Não me entendam mal. Sigo a política americana desde 1992. E, se votasse, teria votado sempre Democrata. Também considero execrável o lobby da NRA contra um efectivo controlo de armas. Mas história é história e os Democratas não são campeões desta história.

A história do Partido Democrata na luta pelos direitos dos negros é recente, começou com o Civil Rights Act de Johnson, em 1964, e culminou com a eleição de Obama.

Mas não esqueçamos que o Partido Republicano nasceu em meados do século XIX para combater a escravatura então defendida pelo Partido Democrata.

* Sempre que usar a maiúscula para Democratas e Republicanos refiro-me a membros ou apoiantes do Partido Democrata e do Partido Republicano.

in "A Destreza das Dúvidas", por Luís Aguiar-Conraria