A canção que hoje persegue os políticos da era da troika nunca foi pacífica para as pessoas de Grândola - nem para o intérprete Zeca Afonso, que nunca mais lá a cantou depois de uma vez ter sido impedido de a terminar.
Viagem ao passado recente de um símbolo. Aquilo foi uma espécie de “Grândola” ao contrário, mas aconteceu em Grândola.
Ninguém foi impedido de falar por causa da canção como se tornou costume agora, deu-se o inverso: a cantiga foi interrompida, o que é difícil de entender, os tempos eram tão estranhos que hoje ainda há quem oiça esta história custando acreditar nela.
Parecia tudo às avessas, o mundo estava revirado pelos forros, e a prova é que o sucedido se passou com Zeca Afonso, a cantar o “Grândola Vila Morena” no salão dos Bombeiros Voluntários de Grândola, ali na Praça da Palmeiras, nome popular, uma vez que o verdadeiro é da República, com estátua de um republicano no meio.
José Afonso começou, mas não acabou, não o deixaram terminar, aconteceu o impensável: apuparam-no, assobiaram-no, gritaram-lhe “esquerdista”, estragaram o espectáculo, estava o caldo entornado, não havia fraternidade, muito menos um amigo em cada esquina, o Zeca meteu a viola no saco, literalmente. Fez o que fazem hoje alguns ministros, quando pela canção não os deixam falar, estes tempos de troika também são dos avessos. Ele foi-se embora, abalou, como dizem os alentejanos.
Os manifestantes não eram fascistas, antes fossem, ai do fascista que se metesse em trabalhos naqueles tempos, levava uma carga de porrada que nem sabia, aquela malta era danada, e até havia um bairro chamado “Danado” no centro da vila a provar que a pancadaria era fruta da época quando fosse preciso.
Os autores dessa “grandolada”, designação moderna que não existia no pós-PREC, eram comunistas, custa a crer. Eram militantes do PCP, organizados ou voluntariosos, quem fala disso não o sabe dizer, não perdoavam a José Afonso o apoio a Otelo Saraiva de Carvalho nas presidenciais de 1976 contra o camarada Octávio Pato, nem a sua aproximação à LUAR, organização de extrema-esquerda, que como as outras forças radicais não alinhava com o Partido Comunista, força dominante no Alentejo e em Grândola também, pelo menos até 2001.
Podia compreender-se a tristeza da militância exacerbada, afinal a revolução passara, o PREC finara-se em finais de 1975, mas em Grândola ainda estava tudo muito quente, muito vivo, as fronteiras bem traçadas, nos códigos da esquerda chamava-se a isto setarismo, por isso é que o PCP e o Bloco de Esquerda ainda hoje não se entendem.
O boicote foi testemunhado por José Horta, que foi próximo da UDP e hoje é presidente da Junta de Freguesia de Santa Margarida da Serra (independente pelo PS), e confirmado por Dulce Manuel, sobrinha do célebre Zé da Conceição, um dos responsáveis pelo convite que desencadeou a criação do poema do “Grândola Vila Morena”, mas essa é outra história, já lá vamos. Nem um nem outro se lembram da data certa do incidente, talvez em 1976, no máximo terá acontecido em 1978, na fase em que o adversário político se confundia com inimigo, um tempo em que as atitudes políticas deixavam marcas para uma vida.
José Afonso não esqueceria o episódio. “No fim do concerto, veio falar comigo e com os meus pais e estava muito aborrecido com aquela situação”, recorda Dulce Manuel. “Ficou muito magoado com Grândola”, diz. Segundo se lembra José Horta, o Zeca havia de “comentar que tinha sido a única terra onde não tinha conseguido acabar o Grândola Vila Morena”. Não voltou a cantar na vila cujo nome celebrizou, embora nem para todos essa fosse uma designação de boa fama.
A historiadora Irene Pimentel, que escreveu uma fotobiografia de José Afonso, destaca a sua humildade e “pudor” em relação a homenagens – na vila há ruas e praças com o nome dele – mas também confirma: “Sei que ele estava muito magoado com Grândola”. Teria a ver com o referido episódio, e ao mesmo tempo com a tentativa de apropriação por parte do PCP, não deixava de parecer contraditório.
Dentro de Grândola, a “Vila Morena” era em geral uma cantiga desconfortável para quem não fosse comunista. Os grupos de extrema-esquerda acusavam o PCP de se ter apropriado da obra de Zeca Afonso e de tentar ocupar a sua memória. Apesar disso, na Renault 4L que circulava pelas ruas com os megafones do PCP no tejadilho, o partido emitia dias a fio músicas de Zeca como se ele fosse um comunista.
Para os não comunistas, que sendo menos ainda eram alguns, tanto fazia. Aquela canção, bonita como os mais belos cantares alentejanos, com uma letra política subtil, menos panfletária que muitas outras, a falar de amigos e de fraternidade, era coisa de comunas, merecia distância, vade retro brejenvistas, durante muito tempo se confundiu a revolução com o processo revolucionário, as cicatrizes eram profundas. A terra tinha nome próprio e dois apelidos, Grândola e “Vila Morena”, motivo suficiente para um anónimo ao longo dos anos os pintar na placa de entrada na localidade, que a seguir alguém riscava, embora ele voltasse escrever: “Grândola Vila Morena” e alguém tornasse a riscar…
A cantiga não era universal como viria a ser. “As pessoas não gostavam de Grândola porque, por causa da música, ficou com a fama de ser a causadora da revolução e depois toda a gente achava que em Grândola só havia comunistas!”, contou um idoso grandolense a Joana Correia, no âmbito de um mestrado da Universidade Aberta sobre Identidade e Memória, realizado em 2010.
Os depoimentos recolhidos foram todos anónimos, ainda hoje poucos aceitam dar a cara para falar destes desconfortos. A proprietária de uma mercearia recordava outro episódio eloquente: “A única vez que disse [ser de Grândola] serviu de lição: tínhamos ido numa excursão, eu e um grupo de amigas, e estávamos a almoçar numa pensão. Calhou estarmos a falar na nossa terra e, de repente, todas as pessoas que estavam a almoçar à nossa volta levantaram-se e saíram, a dizerem que não comiam na mesma sala em que estivesse ‘gentalha’ de Grândola.
O dono da pensão veio ter connosco e convidou-nos a sair, dizendo que não servia almoços a comunistas. E eu que nunca fui comunista…” As histórias sucedem-se, como a do agricultor que numa feira de gado teve de ser acudido por um compadre de Alcácer do Sal. “A verdade é que por causa disso acabei metido numa bonita sem ter feito nada”. Quando disse que era de Grândola, o homem que estava à sua frente voltou-se, agressivo. “E eu só dizia: mas eu não tenho culpa de ser de Grândola!” Ninguém tinha culpa, os símbolos são o que são.
Naquele tempo, em que os carros usavam uma placa a dizer a localidade de origem, podia ser um problema transportar aquele nome e viajar para o Norte, onde até há poucos anos se queimavam sedes do PCP em autos de fé políticos. “Quando íamos passear para fora de Grândola, tínhamos sempre que tapar essa chapa porque corríamos o risco de sair do carro e quando voltássemos ter o carro todo partido. Aconteceu a muita gente. Nunca dizia que era de Grândola.
As pessoas não gostavam, achavam que em Grândola éramos todos comunistas”, contou uma professora reformada à mesma investigadora. Se no Norte e no Centro do País os grandolenses eram rotulados de moscovitas mesmo não o sendo, em Grândola se não o fossem eram pelo menos reaccionários. Os piores seriam fascistas, dependia se tinham terras ou fábricas de cortiça. O mundo era a preto e branco, os cinzentos e as tonalidades vieram depois com o amornar dos fervores tanto revolucionários, como da reação.
O centro geométrico político daquela Vila Morena estava muito deslocado, havia razões sobejas para isso, tanto sociais como históricas, de modo que a direita começava demasiado à esquerda, eram sintomas não só dos tempos mas do contexto de décadas. Bastava ver o que era a vida dos trabalhadores rurais.
O tempo fez o seu trabalho. Toda esta história começou 10 anos antes do 25 de Abril. Era o ano de 1964. O encenador Hélder Costa, natural de Grândola, estudava em Coimbra, onde vivia numa república chamada Prá-Kys-Tão, e era amigo de Zeca Afonso, que aparecia de vez em quando a visitar os que prály-estavam. Apesar da distância, o alentejano filho da D. Mariana continuava activo como membro da “Música Velha”, o nome simplificado que o povo dá à SMFOG – Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense – onde o já referido Zé da Conceição desenvolvia um trabalho de dinamização cultural de contornos políticos.
Nesse ano, no âmbito do 52º aniversário da “Música Velha”, Zé da Conceição convidou Zeca Afonso através de Hélder Costa para actuar no dia 17 de Maio em Grândola. Era um luxo. Carlos Paredes tinha acabado de compor os Verdes Anos. Atuaram os dois no mesmo dia. Conheceram-se ali. “Foi extraordinário”, recorda Hélder Costa, “durante a noite o Zeca estreou canções que ninguém conhecia.
A relação foi tão afectiva que dias depois mandou para a direção da coletividade um poema de homenagem a Grândola, que não era uma canção”, recorda o encenador. O poema foi lido publicamente na sociedade a 31 de Maio. A carta enviada tinha sido escrita a tinta verde, “não sei o que lhe passou pela cabeça”, recorda-se Hélder Costa, e o original foi guardado por Zé da Conceição. “Desgraçado, perdeu-a, ou está escondida ou muito bem guardada”, diz o encenador, a verdade é que a letra começou a ser cantada com a música do “Baleizão, Baleizão”, lembra-se Dulce Manuel, a sobrinha de Zé da Conceição.
A canção definitiva do autor só apareceu com a edição do álbum Cantigas do Maio, em 1971, depois de pelo menos quatro versões diferentes e após e de ter perdido uma estrofe pelo caminho: “Capital da cortesia / Não se teme de oferecer / Quem for a Grândola um dia / Muita coisa há-de trazer”.
Como o destino é feito de acasos, a canção nunca teria esta importância política se a Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas (MFA) não se tivesse lembrado de escolher “a Grândola” como contra-senha para a operação que desencadeou o golpe militar, no dia 25 de Abril de 1974.
Carlos Beato, ex-presidente da Câmara de Grândola (2001-2013), alferes na coluna de Salgueiro Maia que tomou o poder a Marcello Caetano, diz que a “Vila Morena” foi escolhida porque não estava na lista da censura e podia ser passada na rádio sem levantar suspeitas. Foi emitida na Renascença à meia noite e vinte. Tornou-se um hino.
No entanto, a relação do autor com a sua “capital da cortesia” nunca mais seria a mesma depois daquele concerto no salão dos bombeiros. José Afonso chegaria a ter uma casa em S. Francisco da Serra, perto de Grândola, e são vários os relatos, exagerados ou não, de que entrava no café Pica-Pau, onde se juntavam os simpatizantes e militantes comunistas, e que não lhe falavam ou saíam para a rua para não lhe falarem. Pelo menos não era recebido de forma calorosa. Em cada esquina um amigo. E em cada rosto igualdade.
Em meados dos anos 80, um grupo que não estava ligado diretamente ao PCP organizou-lhe uma homenagem, já José Afonso estava doente. “Aceitou, mas estava muito triste porque tinha sido mal recebido na terra”, conta Isabel Revez, quadro superior da câmara de Grândola, uma das organizadoras do evento. O autor falou com amigos para participarem, colaborou mas não esteve presente, e pediu, quase como condição, que se falasse de Timor, o que a organização cumpriu, convidando os refugiados timorenses em Portugal.
Apesar de tudo, “fez-se o espetáculo debaixo de alguma tensão”, diz Isabel Revez. As comemorações tinham dois dias, mas não passaram do primeiro, quando Francisco Fanhais se sentiu visado por um funcionário da autarquia, quando ao dedicar uma música a Otelo, preso no âmbito do processo das FP’25, o animador cultural da câmara o tentou apressar ou calar. Caiu mal. Fanhais terá dito que se não o calavam antes do 25 de Abril não seria agora censurado, houve alguma confusão. No dia seguinte a homenagem foi um fiasco, com o cartaz cancelado, de Fausto a José Mário Branco, tudo ausente.
Quando houve uma petição na Assembleia Municipal para reunir fundos e apoiar tratamentos para o cantor no estrangeiro, a proposta não passou, com os votos contra do PCP, recorda Graça Nunes, actual presidente da câmara, do PS.
Quando se organizou o concerto no Coliseu em 1983, o último do cantor, Ivone Chinita, uma grandolense que trabalhava na produtora Era Nova, terá enviado convites para a câmara municipal, que ficaram por usar. Dilar Chinita, irmã de Ivone, já falecida, recorda: “A minha irmã ofereceu um envelope com 40 bilhetes para a câmara organizar um autocarro, mas ninguém foi. Disseram-lhe na câmara que as pessoas não estavam interessadas”.
Mais setarismo.
Viagem ao passado recente de um símbolo. Aquilo foi uma espécie de “Grândola” ao contrário, mas aconteceu em Grândola.
Ninguém foi impedido de falar por causa da canção como se tornou costume agora, deu-se o inverso: a cantiga foi interrompida, o que é difícil de entender, os tempos eram tão estranhos que hoje ainda há quem oiça esta história custando acreditar nela.
Parecia tudo às avessas, o mundo estava revirado pelos forros, e a prova é que o sucedido se passou com Zeca Afonso, a cantar o “Grândola Vila Morena” no salão dos Bombeiros Voluntários de Grândola, ali na Praça da Palmeiras, nome popular, uma vez que o verdadeiro é da República, com estátua de um republicano no meio.
José Afonso começou, mas não acabou, não o deixaram terminar, aconteceu o impensável: apuparam-no, assobiaram-no, gritaram-lhe “esquerdista”, estragaram o espectáculo, estava o caldo entornado, não havia fraternidade, muito menos um amigo em cada esquina, o Zeca meteu a viola no saco, literalmente. Fez o que fazem hoje alguns ministros, quando pela canção não os deixam falar, estes tempos de troika também são dos avessos. Ele foi-se embora, abalou, como dizem os alentejanos.
Os manifestantes não eram fascistas, antes fossem, ai do fascista que se metesse em trabalhos naqueles tempos, levava uma carga de porrada que nem sabia, aquela malta era danada, e até havia um bairro chamado “Danado” no centro da vila a provar que a pancadaria era fruta da época quando fosse preciso.
Os autores dessa “grandolada”, designação moderna que não existia no pós-PREC, eram comunistas, custa a crer. Eram militantes do PCP, organizados ou voluntariosos, quem fala disso não o sabe dizer, não perdoavam a José Afonso o apoio a Otelo Saraiva de Carvalho nas presidenciais de 1976 contra o camarada Octávio Pato, nem a sua aproximação à LUAR, organização de extrema-esquerda, que como as outras forças radicais não alinhava com o Partido Comunista, força dominante no Alentejo e em Grândola também, pelo menos até 2001.
Podia compreender-se a tristeza da militância exacerbada, afinal a revolução passara, o PREC finara-se em finais de 1975, mas em Grândola ainda estava tudo muito quente, muito vivo, as fronteiras bem traçadas, nos códigos da esquerda chamava-se a isto setarismo, por isso é que o PCP e o Bloco de Esquerda ainda hoje não se entendem.
O boicote foi testemunhado por José Horta, que foi próximo da UDP e hoje é presidente da Junta de Freguesia de Santa Margarida da Serra (independente pelo PS), e confirmado por Dulce Manuel, sobrinha do célebre Zé da Conceição, um dos responsáveis pelo convite que desencadeou a criação do poema do “Grândola Vila Morena”, mas essa é outra história, já lá vamos. Nem um nem outro se lembram da data certa do incidente, talvez em 1976, no máximo terá acontecido em 1978, na fase em que o adversário político se confundia com inimigo, um tempo em que as atitudes políticas deixavam marcas para uma vida.
José Afonso não esqueceria o episódio. “No fim do concerto, veio falar comigo e com os meus pais e estava muito aborrecido com aquela situação”, recorda Dulce Manuel. “Ficou muito magoado com Grândola”, diz. Segundo se lembra José Horta, o Zeca havia de “comentar que tinha sido a única terra onde não tinha conseguido acabar o Grândola Vila Morena”. Não voltou a cantar na vila cujo nome celebrizou, embora nem para todos essa fosse uma designação de boa fama.
A historiadora Irene Pimentel, que escreveu uma fotobiografia de José Afonso, destaca a sua humildade e “pudor” em relação a homenagens – na vila há ruas e praças com o nome dele – mas também confirma: “Sei que ele estava muito magoado com Grândola”. Teria a ver com o referido episódio, e ao mesmo tempo com a tentativa de apropriação por parte do PCP, não deixava de parecer contraditório.
Dentro de Grândola, a “Vila Morena” era em geral uma cantiga desconfortável para quem não fosse comunista. Os grupos de extrema-esquerda acusavam o PCP de se ter apropriado da obra de Zeca Afonso e de tentar ocupar a sua memória. Apesar disso, na Renault 4L que circulava pelas ruas com os megafones do PCP no tejadilho, o partido emitia dias a fio músicas de Zeca como se ele fosse um comunista.
Para os não comunistas, que sendo menos ainda eram alguns, tanto fazia. Aquela canção, bonita como os mais belos cantares alentejanos, com uma letra política subtil, menos panfletária que muitas outras, a falar de amigos e de fraternidade, era coisa de comunas, merecia distância, vade retro brejenvistas, durante muito tempo se confundiu a revolução com o processo revolucionário, as cicatrizes eram profundas. A terra tinha nome próprio e dois apelidos, Grândola e “Vila Morena”, motivo suficiente para um anónimo ao longo dos anos os pintar na placa de entrada na localidade, que a seguir alguém riscava, embora ele voltasse escrever: “Grândola Vila Morena” e alguém tornasse a riscar…
A cantiga não era universal como viria a ser. “As pessoas não gostavam de Grândola porque, por causa da música, ficou com a fama de ser a causadora da revolução e depois toda a gente achava que em Grândola só havia comunistas!”, contou um idoso grandolense a Joana Correia, no âmbito de um mestrado da Universidade Aberta sobre Identidade e Memória, realizado em 2010.
Os depoimentos recolhidos foram todos anónimos, ainda hoje poucos aceitam dar a cara para falar destes desconfortos. A proprietária de uma mercearia recordava outro episódio eloquente: “A única vez que disse [ser de Grândola] serviu de lição: tínhamos ido numa excursão, eu e um grupo de amigas, e estávamos a almoçar numa pensão. Calhou estarmos a falar na nossa terra e, de repente, todas as pessoas que estavam a almoçar à nossa volta levantaram-se e saíram, a dizerem que não comiam na mesma sala em que estivesse ‘gentalha’ de Grândola.
O dono da pensão veio ter connosco e convidou-nos a sair, dizendo que não servia almoços a comunistas. E eu que nunca fui comunista…” As histórias sucedem-se, como a do agricultor que numa feira de gado teve de ser acudido por um compadre de Alcácer do Sal. “A verdade é que por causa disso acabei metido numa bonita sem ter feito nada”. Quando disse que era de Grândola, o homem que estava à sua frente voltou-se, agressivo. “E eu só dizia: mas eu não tenho culpa de ser de Grândola!” Ninguém tinha culpa, os símbolos são o que são.
Naquele tempo, em que os carros usavam uma placa a dizer a localidade de origem, podia ser um problema transportar aquele nome e viajar para o Norte, onde até há poucos anos se queimavam sedes do PCP em autos de fé políticos. “Quando íamos passear para fora de Grândola, tínhamos sempre que tapar essa chapa porque corríamos o risco de sair do carro e quando voltássemos ter o carro todo partido. Aconteceu a muita gente. Nunca dizia que era de Grândola.
As pessoas não gostavam, achavam que em Grândola éramos todos comunistas”, contou uma professora reformada à mesma investigadora. Se no Norte e no Centro do País os grandolenses eram rotulados de moscovitas mesmo não o sendo, em Grândola se não o fossem eram pelo menos reaccionários. Os piores seriam fascistas, dependia se tinham terras ou fábricas de cortiça. O mundo era a preto e branco, os cinzentos e as tonalidades vieram depois com o amornar dos fervores tanto revolucionários, como da reação.
O centro geométrico político daquela Vila Morena estava muito deslocado, havia razões sobejas para isso, tanto sociais como históricas, de modo que a direita começava demasiado à esquerda, eram sintomas não só dos tempos mas do contexto de décadas. Bastava ver o que era a vida dos trabalhadores rurais.
O tempo fez o seu trabalho. Toda esta história começou 10 anos antes do 25 de Abril. Era o ano de 1964. O encenador Hélder Costa, natural de Grândola, estudava em Coimbra, onde vivia numa república chamada Prá-Kys-Tão, e era amigo de Zeca Afonso, que aparecia de vez em quando a visitar os que prály-estavam. Apesar da distância, o alentejano filho da D. Mariana continuava activo como membro da “Música Velha”, o nome simplificado que o povo dá à SMFOG – Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense – onde o já referido Zé da Conceição desenvolvia um trabalho de dinamização cultural de contornos políticos.
Nesse ano, no âmbito do 52º aniversário da “Música Velha”, Zé da Conceição convidou Zeca Afonso através de Hélder Costa para actuar no dia 17 de Maio em Grândola. Era um luxo. Carlos Paredes tinha acabado de compor os Verdes Anos. Atuaram os dois no mesmo dia. Conheceram-se ali. “Foi extraordinário”, recorda Hélder Costa, “durante a noite o Zeca estreou canções que ninguém conhecia.
A relação foi tão afectiva que dias depois mandou para a direção da coletividade um poema de homenagem a Grândola, que não era uma canção”, recorda o encenador. O poema foi lido publicamente na sociedade a 31 de Maio. A carta enviada tinha sido escrita a tinta verde, “não sei o que lhe passou pela cabeça”, recorda-se Hélder Costa, e o original foi guardado por Zé da Conceição. “Desgraçado, perdeu-a, ou está escondida ou muito bem guardada”, diz o encenador, a verdade é que a letra começou a ser cantada com a música do “Baleizão, Baleizão”, lembra-se Dulce Manuel, a sobrinha de Zé da Conceição.
A canção definitiva do autor só apareceu com a edição do álbum Cantigas do Maio, em 1971, depois de pelo menos quatro versões diferentes e após e de ter perdido uma estrofe pelo caminho: “Capital da cortesia / Não se teme de oferecer / Quem for a Grândola um dia / Muita coisa há-de trazer”.
Como o destino é feito de acasos, a canção nunca teria esta importância política se a Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas (MFA) não se tivesse lembrado de escolher “a Grândola” como contra-senha para a operação que desencadeou o golpe militar, no dia 25 de Abril de 1974.
Carlos Beato, ex-presidente da Câmara de Grândola (2001-2013), alferes na coluna de Salgueiro Maia que tomou o poder a Marcello Caetano, diz que a “Vila Morena” foi escolhida porque não estava na lista da censura e podia ser passada na rádio sem levantar suspeitas. Foi emitida na Renascença à meia noite e vinte. Tornou-se um hino.
No entanto, a relação do autor com a sua “capital da cortesia” nunca mais seria a mesma depois daquele concerto no salão dos bombeiros. José Afonso chegaria a ter uma casa em S. Francisco da Serra, perto de Grândola, e são vários os relatos, exagerados ou não, de que entrava no café Pica-Pau, onde se juntavam os simpatizantes e militantes comunistas, e que não lhe falavam ou saíam para a rua para não lhe falarem. Pelo menos não era recebido de forma calorosa. Em cada esquina um amigo. E em cada rosto igualdade.
Em meados dos anos 80, um grupo que não estava ligado diretamente ao PCP organizou-lhe uma homenagem, já José Afonso estava doente. “Aceitou, mas estava muito triste porque tinha sido mal recebido na terra”, conta Isabel Revez, quadro superior da câmara de Grândola, uma das organizadoras do evento. O autor falou com amigos para participarem, colaborou mas não esteve presente, e pediu, quase como condição, que se falasse de Timor, o que a organização cumpriu, convidando os refugiados timorenses em Portugal.
Apesar de tudo, “fez-se o espetáculo debaixo de alguma tensão”, diz Isabel Revez. As comemorações tinham dois dias, mas não passaram do primeiro, quando Francisco Fanhais se sentiu visado por um funcionário da autarquia, quando ao dedicar uma música a Otelo, preso no âmbito do processo das FP’25, o animador cultural da câmara o tentou apressar ou calar. Caiu mal. Fanhais terá dito que se não o calavam antes do 25 de Abril não seria agora censurado, houve alguma confusão. No dia seguinte a homenagem foi um fiasco, com o cartaz cancelado, de Fausto a José Mário Branco, tudo ausente.
Quando houve uma petição na Assembleia Municipal para reunir fundos e apoiar tratamentos para o cantor no estrangeiro, a proposta não passou, com os votos contra do PCP, recorda Graça Nunes, actual presidente da câmara, do PS.
Quando se organizou o concerto no Coliseu em 1983, o último do cantor, Ivone Chinita, uma grandolense que trabalhava na produtora Era Nova, terá enviado convites para a câmara municipal, que ficaram por usar. Dilar Chinita, irmã de Ivone, já falecida, recorda: “A minha irmã ofereceu um envelope com 40 bilhetes para a câmara organizar um autocarro, mas ninguém foi. Disseram-lhe na câmara que as pessoas não estavam interessadas”.
Mais setarismo.